domingo, 26 de outubro de 2008

Um manifesto contra a intolerância

Hoje não estou escrevendo um texto com minhas palavras, mas apenas um texto do século XVII, que expressa a intolerância, que ainda que persiste em nosso mundo. Uriel da Costa foi uma das vítimas da intolerância religiosa, assim como Giordano Bruno, pouco tempo antes.

Uriel da Costa (1585-1640), filósofo e livre pensador. Nascido em família marrana, de pai católico devoto e mãe secretamente judia, estudou na Universidade de Coimbra e entrou para o serviço eclesiástico no pequeno escalão. Em sua autobiografia diz ter-se voltado para o judaísmo após uma longa leitura da Bíblia. Tendo convertido sua família ao "seu" judaísmo, foge da Inquisição, instala-se em Amsterdã para praticar livremente sua religião e descobre que seu judaísmo difere sensivelmente do judaísmo rabínico. Ele critica a rigidez e o ritualismo dos "Fariseus de Amsterdã" e discute a doutrina da imortalidade da alma que não lhe parece ser explícita na Bíblia. Uriel da Costa é considerado a vítima por excelência do obscurantismo e da intolerância religiosa.



ESPELHO DA VIDA HUMANA

Vi a luz em Portugal, na cidade do Porto. Os meus progenitores pessoas bem nascidas, descendiam de judeus. que em tempo haviam sido forçados neste reino a abraçar a religião cristã. Meu pai era verdadeiro cristão, observantíssimo dos preceitos da honra e grande prezador da honestidade de costumes. Em sua casa fui criado fidalgamente. Não faltavam servos e na cavalariça cavalo de boa raça espanhola para exercícios de equitação, arte cm que meu pai era versadissimo. e eu de longe lhe seguia as pisadas. Depois de instruído em algumas disciplinas que os mancebos de boa família costumam aprender, passei a estudar Direito. No que toca á índole e condição, era eu por natureza mui piedoso e tão propenso á compaixão, que se alguma vez ouvia contar uma desgraça acontecida a outrem, de modo nenhum podia conter as lágrimas. A vergonha era a tal ponto inata em mim, que de nenhuma cousa eu tinha tanto medo, como do que deslustra o nome. O meu coração não agasalhava nenhum sentimento baixo. e não deixava de abrir a porta á ira, se a causa justa o requeria. Assim que eu era na verdade adverso aos soberbos e insolentes que por des­prezo e violência costumam agravar os seus semelhantes, desejando apadrinhar os fracos e pondo-me de preferência ao lado deles. Pelo que respeita a religião, padeci na minha vida cousas inacreditáveis. Fui criado, segundo o costume daquele reino, na religião católica, e sendo já rapaz feito, com grande temor da condenação eterna, desejava observar pontualmente todos os preceitos religiosos. Aplicava-me á leitura do Evangelho e de outras obras espirituais, percorria as Sumas dos confessores, e quanto mais me entregava a estes estudos, maiores dificuldades se me alevantavam. Acabei por cair em inextricáveis enleios, em ansiedades e aperturas de coração. Ia-me finando de melancolia e mágoa. Antolhou-se-me impossível confessar os pecados segundo os termos da Igreja romana, de modo que pudesse obter dignamente a absolvição e cumprir tudo quanto era requerido. A consequência foi desesperar da salvação, se a salvação tinha de ser obtida mediante a observância de tais normas. Ora sendo difícil poder apartar-me de uma religião a que desde o berço fora acostumado e que pela fé, já tinha deitado em mim fundas raízes, comecei a pensar — foi isto à volta dos vinte e dois anos que poderia talvez ser menos verdade o que se dizia de uma outra vida, e a ter incertezas sobre se a fé prestada a tais dogmas se casava bem com, a razão, por isso que a mesma razão me ditava e de continuo me metia pelos ouvidos dentro muitas cousas que fortemente contrariavam aqueles dogmas. Entrado nesta dúvida assosseguei, e fosse o que fosse, assentava comigo que por tal rota não podia alcançar a salvação da alma. Por esse tempo cursava eu as aulas de Direito, segundo já disse, e andando nos vinte e cinco anos, como se me deparasse ensejo, obtive um beneficio eclesiástico, a tesouraria de uma Colegiada.
Não tendo, porém, encontrado repouso na religião católica romana, e desejando estar abraçado a alguma religião, cri que sabia que entre cristãos e judeus havia rijo combate, pus-me a percorrer os livros de Moisés e dos profetas, onde se me apresentavam alguma cousa que estavam em não pequena contradição com o Novo Testamento e encerravam menor dificuldade. Demais no Antigo Testamento criam tanto os judeus como os cristãos, no Novo Testamento só os cristãos. Acabei por entender, acreditando em Moisés, que devia obedecer á Lei, visto que ele afirmava ter recebido tudo de Deus, declarando-se puro mensageiro chamado pelo próprio Deus para esta missão, ou melhor, obrigado (destarte se enganam os pequeninos). Isto assentado, como quer que naquele reino não houvesse liberdade de professar de algum modo a religião de Moisés, pensei em mudar de residência, deixando a terra pátria. A este fim não duvidei resignar em favor de outrem o benefício eclesiástico, não cuidando dos proventos nem da honra que dali me vinham conformemente aos usos daquele país. Deixei também uma formosa casa de habitação, situada em uma parte magnífica da cidade e construída por meu pai. Embarcámos, pois, não sem grave risco, — os que descendem de hebreus não podem deixar o reino sem permissão especial d’el-rei — eu. minha mãe e meus irmãos, aos quais. movido pelo amor fraterno, eu comunicara o que sobre a religião me havia parecido mais consentâneo, embora tivesse dúvidas acerca de alguns pontos e esta comunicação poderia redundar em grande mal para mim: tão perigoso é naquele país falar em semelhantes assuntos! Ter minada a viagem, aportámos a Amsterdam, onde encontrámos os judeus vivendo em liberdade. Em obediência á Lei, cumprimos para logo o preceito da circuncisão.
Ao cabo de alguns dias tinha-me a experiência mostrado que os costumes e ordenações dos judeus estavam longe de casar-se com os preceitos de Moisés. Ora se cumpria observar a Lei com pureza, segundo ela própria requer, mal andaram os chamados Doutores dos judeus com tantas invenções, que de todo o ponto destoam da Lei. Assim que não pude acabar comigo que me contivesse, antes entendi que faria cousa do agrado de Deus, se defendesse a Lei com isenção. Estes Doutores judaicos do tempo presente – que ainda conservam os seus costumes e condição maldosa, porfiando galhardamente em defesa da seita e das instituições dos abomináveis fariseus, não sem esperança de benesses pessoais e, segundo já outrora lhes foi imputado fundamentadamente, para ocuparem as primeiras cadeiras no templo e terem as primeiras saudações na praça pública – de modo nenhum vieram em que, sequer nas cousas mais pequenas, eu me apartasse deles, pretendendo que sem desvio algum lhes fosse na esteira; de contrário, ameaçaram-me com a excomunhão e privação de toda a comunicação com os fieis nas cousas divinas e humanas. Como, porém, ficasse muito mal virar as costas diante de tal medo quem por amor da liberdade deixara a pátria e desprezara outros proveitos, e o submeter-me a homens em tal caso, mormente quando eles não tinham poder legítimo, fosse acto de pouca religião e impróprio do homem digno deste nome, decidi antes padecer tudo e permanecer firme no meu propósito. Consequentemente fui por eles excomungado e excluído da comunicação com todos os fieis, e os meus próprios irmãos, de quem anteriormente eu fora mestre, com medo deles passavam por mim na rua sem me saudar.
Nestas circunstâncias resolvi escrever uma obra em que mostrasse a justiça da minha causa e provasse claramente à luz da própria Lei o infundado dos ensinamentos e práticas dos fariseus e o contraste em que as suas tradições e instituições estavam com a lei de Moisés. Principiada a obra, vim também – cumpre referir tudo como se passou, sem refolho e com verdade – a abraçar, resoluta e deliberadamente, o parecer daqueles que assentam serem temporais o prémio e a pena da Lei velha, e não crêem em uma outra vida e na imortalidade da alma, estribando-me, para não falar doutras razões, em que a Lei de Moisés guarda absoluto silêncio sobre estes pontos, e aos que observam ou quebrantam os seus preceitos, só promete prémio temporal ou pena temporal. Grande foi o regozijo dos meus inimigos ao saber que eu adoptara este parecer, julgando terem alcançado só por este facto larguíssima defesa perante os cristãos, que em virtude de fé especial fundada na Lei evangélica, onde se faz menção expressa da felicidade eterna e das penas eternas, crêem e reconhecem a imortalidade da alma. Com este intuito e para me taparem a boca nos demais pontos e me tornarem odioso entre os próprios cristãos, antes de entrar no prelo o meu escrito, tiraram a lume um opúsculo, da mão de certo médico, com o título De immortalitate animarum. Na sua obra o médico fartava-se de atassalhar-me, como que eu defendesse a seita de Epicuro pois quem negava a imortalidade da alma, pouco faltava para negar a existência de Deus. — Neste tempo eu tinha má opinião daquele filósofo, e fundando-me na informação parcial de outrem, dava sentença temerária contra uma parte ausente sem a ouvir; mas desde que soube o conceito que dele faziam algumas pessoas amantes da verdade, e tive conhecimento da sua doutrina real, sinto haver em tempo chamado louco e insano um tal sujeito, de que ainda não posso formar juízo cabal por me serem desconhecidos os seus escritos. — Os filhos dos ditos meus inimigos, industriados pelos rabinos e pelos pais, juntavam-se em magotes pelas ruas e a brados praguejavam-me e irri­tavam-me com toda a casta de impropérios, apelidando-me, voz em grita, de herege e de apóstata. As vezes até se ajuntavam diante da minha porta, apedrejavam-na, e tudo tentavam para me perturbarem, de jeito que nem na minha própria casa pudesse lograr sossego. Publicado que foi aquele livro contra mim, para logo apercebi-me para a defesa e escrevi um opúsculo em resposta a ele, impugnando com todas as forças a imortalidade da alma e tocando de caminho alguns pontos em que os fariseus se apartam de Moisés. Tanto que esta minha obra saiu a público, ajuntaram-se os senadores e o grão-rabino dos judeus e propuseram uma acusação contra mim perante a autoridade civil, alegando que eu havia escrito um livro em que negava a imortalidade da alma e não só os ofendia a eles mas até abalava o edifício da religião cristã. Por efeito desta denúncia fui metido na cadeia, e depois de lá estar oito para dez dias soltaram-me debaixo de fiança. Aquela autoridade exigia de mim o pagamento de uma multa, e em cabo fui condenado a pagar-lhe trezentos florins e ao perdimento dos exemplares da obra.
Depois, com o rodar do tempo, como quer que a experiência e os anos descubram muita coisa e consequentemente dêem volta ao pensamento do homem (seja-me permitido, mais uma vez o digo, falar com franqueza; e efectivamente, porque não há-de ser lícito a quem, por assim dizer, escreve o seu testamento para deixar aos homens as contas da sua vida e um exemplo verdadeiro das desventuras humanas, porque não há-de ser licito, digo, contar a verdade?), entrei a ter dúvidas sobre se a lei de Moisés deveria ser tida por lei de Deus, por isso que muitas cousas havia que aconselhavam, ou melhor, forçavam a dizer o contrário. Assentei por fim que a Lei de Moisés não era de Deus, mas somente invenção humana, como outras sem conto que tem havido no mundo. É que muitos pontos brigavam com a lei da Natureza, e Deus, autor da Natureza, não podia estar em contradição consigo mesmo, e esta loia se propusesse aos homens praticarem actos contrários à Natureza, de que se dizia autor. Definido este ponto no meu espirito, disse eu comigo: Que aproveita (oxalá nunca tal ideia houvesse surgido na minha mente) permanecer eu neste estado até à morte, separado da comunicação com estes Padres e com este povo, mormente sendo eu estrangeiro nestas paragens e não tendo trato com os cidadãos, cuja língua até desconheço? Melhor será voltar a comunicação com eles e seguir-lhes as pisadas como eles querem, fazendo, segundo diz o rifão, de macaco entre os macacos. Movido desta consideração, tornei a comunicar com eles, retratando as minhas expressões e subscrevendo as opiniões deles, havendo já quinze anos que deles vivia separado. Desta reconciliação foi, por assim dizer, medianeiro um meu primo da parte de meu pai.
Decorridos dias, fui denunciado por um rapazito, filho de minha irmã, que eu tinha em casa, com respeito às comidas, ao modo de prepará-las, e a outras cousas, donde se inferia que eu não era judeu. Desta denúncia nasceram novas e violentas guerras. Aquele meu primo, que, segundo já disse, fora o medianeiro da reconciliação, entendendo que o meu procedimento redundava em vergonha sua, soberbão e arrogante que era, sobremaneira imprudente e também sobremaneira impudente, abriu contra mim guerra declarada, e levando após si todos os meus irmãos, não deixou por tentar meio algum que pudesse por alguma forma contribuir para a ruína total da minha honra, dos meus haveres e consequentemente da minha vida. Foi ele quem desbaratou o casamento que eu estava já para contrair (a este tempo era eu viúvo); fez com que um meu irmão retivesse os meus bens que tinha em seu poder, e destruiu as relações que entre nós havia, circunstância que me causou um prejuízo indizível em consequência do estado em que as minhas cousas se achavam. Baste agora dizer que foi ele o mais encarniçado inimigo da minha honra, da minha vida e dos meus bens. Sobre esta guerra, por assim dizer, doméstica, havia outra pública, a dos rabinos e do povo, que principiaram a ter-me novo ódio e cometeram contra mim muitos desaforos; assim que merecidamente eu os aborrecia. Entretanto sobreveio novo acontecimento. Acaso conversei com dois sujeitos, vindos de Londres para esta cidade, um italiano, o outro espanhol, ambos cristãos velhos; declarando-me serem pobres, pediram-me o meu conselho sobre se haviam de aliar-se aos judeus e converter-se ao judaísmo. Aconselhei-os a que tal não fizessem e se conservassem como estavam, pois não sabiam o jugo que iam por sobre o pescoço. Em todo o caso advertia-lhes que não falassem em mim aos judeus; assim prometeram fazer. Estes homens ruins, com os olhos no vergonhosíssimo proveito que esperavam colher, agradeceram-me descobrindo tudo aos meus caríssimos amigos, os fariseus. Nisto congregaram-se os príncipes de Sinagoga, inflamaram-se os rabinos, e a gentalha petulante bradou rijo: Crucifica-o, crucifica-o. Fui chamado perante o Grande Conselho; propuseram as queixas que tinham contra mim em voz baixa e triste, como se se tratara de um caso de morte, e por fim declararam que, se eu era judeu, devia acatar e cumprir a sentença que proferissem. aliás tornaria a ser excomungado. Ah preclaros juízes! Sois juízes para me fazerdes mal; mas se eu carecer do vosso tribunal para me livrardes da violência de outrem e me assegurardes a minha inviolabilidade, então não sois juízes, senão vilíssimos escravos cativados a poder alheio. Qual é a vossa sentença a que quereis que eu me submeta? Então foi-me lido um papel em que se dizia que eu tinha de entrar na Sinagoga vestido de luto, com uma vela negra na mão e vomitar publicamente, na presença da assembleia, certas e determinadas palavras, escritas por eles, bem feias, em que levavam às nuvens as iniquidades por mim cometidas. Depois havia de consentir em ser publicamente açoutado na Sinagoga com um azorrague de couro, em seguida prostrar-me à entrada da própria Sinagoga para todos passarem por cima de mim, e demais jejuar em dias determinados. Acabada que foi a leitura, incendiaram-se-me as entranhas e ardia por dentro em fogo de cólera inextinguível; contudo, sofreando-me, respondi chãmente que não podia cumprir semelhantes imposições. Ouvida a minha resposta, determinaram excomungar-me segunda vez, e não contentes com isto, quando eu passava na rua, muitos deles cuspiam fora e o mesmo faziam os filhos industriados por eles; só não me apedrejavam, porque não podiam. Outros sete anos durou esta guerra, e no correr deste tempo padeci cousas que não se acreditam. Guerreavam-me duas hostes, uma a do povo, outra a dos parentes, que buscavam a minha ignomínia para de mim tirarem vingança. E os parentes não tiveram descanso enquanto não me desalojaram da posição anterior. Disseram entre si: Ele nada fará, se não for obrigado, e cumpre que seja obrigado. Se estava enfermo, via-me sozinho. Se alguma outra calamidade pesava sobre mim, contavam-na entre os seus maiores desejos. Se dizia que se tirasse dentre eles um juiz que decidisse a questão entre nós, nada queriam menos. Tratar de tal pendência em juízo, passo que também tentei, dava muito incómodo e enfado, sendo que consumia estiradíssimo tempo o recorrer aos tribunais, onde, afora muitos outros encargos, há constantemente tantas delongas e adiamentos. Disseram-me muitas vezes: Submete-te a nós, pois somos todos iguais e não imagines nem temas que procedamos mal contigo. Diz enfim uma vez, que estás pronto a cumprir o que te impusermos, e deixa-nos a nós o final, que nós faremos tudo como é bem que se faça. Eu, embora a questão versasse justamente sobre este ponto e semelhante submissão e aceitação de imposições arrancada à força fosse para mim grandíssima vergonha, contudo para levar as cousas até o cabo e com os meus olhos verificar-lhes o desfecho, venci-me a mim próprio determinando-me animosamente a aceitar e experimentar quanto eles quisessem. De feito, no caso de as imposições serem feias e desonrosas, ainda mais justificavam a minha causa contra eles e manifestavam as disposições dos ânimos deles para comigo e a sua lealdade, e patenteava-se de vez o hediondo e execrando dos costumes desta gente que tão indecorosamente abusa das pessoas mais honestas como se fossem os mais vis escravos. Pois cumprirei, disse eu, tudo quanto me impuserdes. Agora dai-me atenção, quantos sois honrados, cordatos e humanos, e meditai profundamente, uma e muitas vezes, a sentença que executaram em mim, de todo inocente, eles, pessoas privadas, sujeitas ao poder de outrem.
Entrei na Sinagoga, que estava cheia de homens e de mulheres, e quando foi tempo, subi ao taburno de madeira que está no meio da Sinagoga para o serviço dos sermões e demais actos do culto; li em voz alta o escrito, redigido por eles, em que eu confessava que merecia morrer mil vezes pelos pecados por mim cometidos, convém a saber: não ter guardado o sábado, ter violado a fé a ponto de chegar a aconselhar os mais a que não viessem para o judaísmo; e que em satisfação de tais culpas eu queria obedecer ao que me ordenassem e cumprir as penas que me impusessem, prometendo não tornar a cair de futuro em semelhantes iniquidades e malfeitorias. Acabada a leitura, desci do taburno e acercou-se de mim o venerando presidente, dizendo-me ao ouvido que fosse para um outro canto da Sinagoga. Assim fiz; então o porteiro ordenou-me que me despisse. Despi-me até à cintura, atei um lenço à cabeça, descalcei os sapatos e ergui os braços, pondo as mãos em uma espécie de coluna. Chegou-se a mim o porteiro e atou-me as mãos à coluna com uma faxa. Depois vem o precentor e, pegando de um couro, deu-me trinta e nove tagantes conformemente à prática tradicional — a Lei prescreve que não sejam mais de quarenta, e sendo estes varões tão escrupulosos observadores das leis, guardam-se de cair em pecar por excesso Durante a flagelação cantava-se um salmo. No fim assentei-me no chão, e o grão-rabino — que ridículas que são as cousas do género humano! —chegando-se à minha beira, levantou-me a excomunhão; destarte já me estava aberta a porta do Céu, que antes disto, de valentemente trancada, me impedia de entrar. Depois tornei a vestir-me e fui para a entrada da Sinagoga. Prostrei-me no chão, amparando-me o guarda a cabeça. Então todos quantos desciam, passavam por cima de mim, quero dizer, levantando um pé, passavam para além junto da parte inferior das minhas pernas. Isto praticavam todos, moços e velhos — não há bugios que possam apresentar a olhos humanos nem actos mais desentoados, nem gestos mais ridículos. No fim, quando já não restava mais ninguém, ergui-me, e tendo-me limpado do pó, com ajuda daquele que estava ao meu lado — ninguém diga que eles não me honraram, pois, se me atagantavam, em todo o caso, choravam e afagavam-me a cabeça — voltei para casa. Ah gente, a mais desfaçada do mundo! Ah padres execrandos, de quem, dizeis, eu não devia temer que me fosse dado mau trato! «Espancarmos-te? Longe tal pensamento!» Avalie agora quem isto ouvir, que cena era aquela; um velho, nada baixo de condição, por natureza sobremodo envergonhado, em uma assembleia pública, despido na presença de toda a gente, homens, mulheres, crianças, e açoutado de ordem de juízes, e de juízes destes, que são mais escravos abjectos do que juízes; considere que dor não seria cair aos pés de inimigos encarniçadíssimos. de quem lhe tinham vindo tantos males, tantos agravos, e prostrar-se para ser pisado; pense-o que ainda mais é, e pode com razão chamar-se caso fora do natural, monstruosidade horrenda, de cuja vista hedionda a gente foge arrepiada — que meus irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, criados juntos na mesma casa, trabalharam afincadamente para isto, esquecendo o afecto que eu lhes tinha — que tal sentimento era feição distintiva da minha índole e esquecendo os muitos favores que por minha intervenção haviam recebido na sua vida e que me foram pagos com ignomínias, perdas, calamidades, fealdades e abominações, tantas, que uma pessoa se corre de referi-las.
Dizem os meus nunca assaz detestados inimigos, que me castigaram justamente para exemplo dos mais, para que daqui em diante ninguém ouse ir contra as suas determinações nem escrever contra os sábios. Ah gente a mais perversa do mundo e pais de toda a mentira! Quanto mais justamente não pudera eu castigá-los a eles, para que depois vós não tivésseis tais atrevimentos contra pessoas amantes da verdade, aborrecedoras de enganos, amigas, sem distinção, de todo o género humano, de quem vós sois inimigos comuns, sendo que não tendes em estimação nenhuma os mais povos, havendo-os na conta de irracionais, e vós subis protervamente a vós sós até às nuvens, afagando-vos com mentiras, quando vós nada tendes de que com verdade vos ufaneis, a não ser que por ventura para vós seja gloria o andardes desterrados, serdes desprezados e odiados de toda a gente por causa do ridículo e exquisito dos vossos costumes, pelos quais pretendeis separar-vos do resto da humanidade. Que se quiserdes fazer glória da simplicidade da vida e da justiça, ai de vós, que palpavelmente vos mostrareis inferiores a muitos a tais respeitos. Digo, pois, que se tivera forças, eu teria podido tirar deles justa vingança dos males grandíssimos e atrocíssimos agravos de que me abeberaram e que me levaram a ganhar aborrecimento à própria existência. Sim! Que pessoa amante do honesto terá ânimo e gosto para viver uma vida coberta de ignomínia? E segundo já foi dito com acerto a urna pessoa dotada de fidalguia de sentimentos, cumpre ou viver arrazoadamente ou morrer com honra. Tanto porém a minha causa é mais justa do que a deles, quanto a verdade se avantaja à mentira. Eles pugnam pela mentira para cativarem os homens e escravizá-los; eu pugno pela verdade e pela liberdade natural do homem, a quem o que melhor fica é, livre de falsas superstições e ritos inaníssimos, passar uma vida que não seja indigna do homem. Confesso que teria sido para mim mais proveitoso, se de principio me houvera calado, e reconhecendo como anda o mundo, preferisse permanecer mudo, que assim convêm que faça quem tem de viver no meio dos homens, para não ser vítima, segundo costuma acontecer, da multidão ignorante ou de tiranos injustos, de feito cada qual com a mira nos seus interesses busca abafar a verdade, e armando laços aos pequenos, calca aos pés a justiça todavia, depois de, incautamente iludido por uma religião vã. ter descido com eles a campo, é melhor morrer gloriosamente, ou ao menos morrer sem desgosto, que, nas pessoas de bem, é o companheiro de uma retirada vergonhosa ou de uma resignação inepta. Costumam eles alegar em seu favor a vontade da grande maioria. «Tu, que és um só, deves de submeter-te a nós, que somos muitos». Amigos, é útil sem dúvida que o indivíduo se submeta à maioria, para não ser dilaniado por ela; mas nem tudo o que é útil se segue que seja belo. Belo certamente não é o retirar-se com ignominia e deixar o campo aos violentos e injustos. Deveis logo confessar que é virtude merecedora de louvor ter rosto quanto possível aos soberbos, para que não aconteça que, procedendo mal e colhendo proveito da sua maldade, se tornem cada vez mais soberbos. E formoso, na verdade, e digno de um homem piedoso e generoso fazer-se pequenino com os pequeninos, ovelha com as ovelhas; mas é sandice, é ignominioso e repreensível vestir, em combate com leões, a mansidão da ovelha. Ora se se põe entre as cousas mais formosas pelejar até morrer em defesa da pátria, por isso que a pátria é alguma cousa que nos pertence, porque razão não há-de ser belo pelejar até morrer em defesa da honra própria, que é pessoalmente nossa e sem a qual não podemos viver arrazoadamente? a não ser que, à semelhança de cerdos imundos, nos revolvamos no imundo tremedal do lucro. Mas dizem os meus detestáveis motejadores, estribando no número todo o seu direito, «O que poderias tu, que és um só, contra tantos ?» Confesso e deploro ter sido esmagado pelo número que vós sois, contudo esses vossos pensamentos e palavras ainda mais me fazem referver a cólera no meu interior e bradar que é impiedade ter piedade de ímpios, soberbos, contumazes e obstinados.
Sei bem que aqueles inimigos, para me desacreditarem perante a multidão indouta, costumavam dizer: «Ele não tem religião nenhuma; não é judeu, não é cristão, não é maometano». Olha primeiro, fariseu, o que dizes; que tu és cego, e conquanto te sobre maldade. dás entretanto topadas como um cego. Anda, diz-me, se eu fosse cristão, o que dirias? É claro que havias de dizer que eu era um abominável idólatra, e que juntamente com Jesus Nazareno, Mestre dos cristãos, havia de ser punido pelo Deus verdadeiro, de cujas bandeiras havia desertado. Se fosse maometano, também todos sabem de que honras me cumularias; e assim nunca poderia escapar à tua língua, tendo por único refúgio prostrar-me aos teus joelhos e beijar os teus execrandos pés, quero dizer, as tuas detestáveis e vergonhosas instituições. Agora suplico-te que me digas se conheces mais alguma religião além das que mencionaste, às duas últimas das quais tu, havendo-as por falsas, chamas antes cismas do que religiões. Já te ouço confessar que conheces mais uma, e é a verdadeira religião, por meio da qual os homens podem agradar a Deus. Com efeito, se todos os povos, exceptuando os judeus — que haveis sempre de separar-vos dos mais e não vos associar a gente baixa e humilde —, observarem os sete mandamentos, que, segundo vós dizeis, foram observados por Noé e pelos que foram antes de Abraão, basta-lhes isto para se salvarem. Já há, conseguintemente, segundo as vossas próprias ideias, uma religião em que eu posso fundar-me, embora descenda de judeus, pois com súplicas alcançarei de vós o consentirdes que eu me misture com a demais multidão, e se não o alcançar, tomarei a licença por mim próprio. Ah cego fariseu, que, olvidando aquela lei, que é a primitiva, e existiu desde sempre e sempre há-de existir, só fazes menção das outras leis que só posteriormente começaram a existir, e que tu próprio condenas, exceptuando a tua, a respeito da qual, queiras ou não queiras, também os mais julgam conformemente à recta razão, que é a verdadeira norma daquela lei natural, que tu esqueceste e que bem desejas sepultar, para pores sobre o colo dos homens o teu execrando jugo, desalojá-los da sã razão e torná-los parecidos a loucos.
Mas já que viemos a este ponto, apraz-me demorar-me aqui um pouco e não calar de todo os louvores desta lei primitiva. Digo pois, que esta lei é comum a todos os homens e neles inata pelo próprio facto de serem homens. Liga a todos uns aos outros pelos laços de mutuo amor, desconhecendo divisões, que são a origem primordial de todos os ódios e dos maiores males. É a mestra da moral. estabelece a distinção do justo e do injusto, do feio e do belo. Tudo quanto há excelente na lei de Moisés ou em qualquer outra, a lei natural encerra-o em si integralmente na perfeição; e se há algum desvio, por pequeno que seja, desta regra natural, para logo surgem as contendas. para logo há a divisão dos espíritos, e não pode encontrar-se sossego. Se porém o desvio é grande, quem bastará a fazer revista dos males e das horrendas monstruosidades que deste adultério nascem e tomam crescimento? Que preceitos soberanos tem a lei de Moisés, ou qualquer outra, que digam respeito á sociedade humana, para que os homens vivam bem e em concórdia uns com os outros? Sem dúvida o primeiro é honrar os pais; o segundo não violar os bens alheios ou seja a vida ou a honra ou as outras cousas úteis para a vida. Qual destes preceitos, dizei-me, não se contém na lei natural e regra certa que está gravada nos corações? Por impulso natural amamos os filhos, os filhos amam os pais, o irmão ama o irmão, o amigo o seu amigo. Por impulso natural desejamos a conservação intacta do que é nosso e aborrecemos os que nos perturbam a paz, os que por violência ou por fraude nos querem tirar o que é nosso. Deste nosso desejo sai uma conclusão evidente, e é que nós não devemos praticar o que nos outros condenamos. Efectivamente, se condenamos os outros que invadem o que e nosso, desde logo a nós mesmos nos condenamos se invadirmos o alheio. E aqui temos já facilmente tudo que é capital em qualquer lei. O que respeita á alimentação, deixemo-lo aos médicos; eles nos farão saber assaz apropriadamente qual é a comida que faz bem á saúde, qual, pelo contrário, é a que a prejudica. No que toca ás mais cerimónias, ritos, regulamentos, sacrifícios, dízimos (fraude insigne para uma pessoa se gozar do trabalho alheio sem fazer nada), ai, ai!... choramos por serem tantos os labirintos em que nos meteu a malícia dos homens. Reconhecendo este ponto, são muito para louvar os verdadeiros cristãos, que mandaram embora todas as cousas deste género, conservando só o que interessa á moralidade. Não vivemos como é de dever, quando observamos muitas futilidades; vivemos, porém, como é de dever quando vivemos conformemente à razão. Alguém dirá que a lei de Moisés ou a lei do Evangelho contem alguma cousa mais alevantada e perfeita, e vem a ser o amarmos os nossos inimigos, preceito que não se contem na lei natural. Respondo-lhe como acima disse. Se nos apartamos da Natureza e pretendemos descobrir alguma cousa mais levantada, para logo surge a luta, perturba-se o sossego. De que serve ordenarem-se-me impossíveis que eu não tenho forças para cumprir? Nenhum bem daí resultará, senão a tristeza do espírito se assentarmos ser impossível, pela ordem da Natureza, amar o nosso inimigo. Ora se não é de todo impossível, segundo a ordem natural, fazer bem aos inimigos (o que pode fazer-se sem haver amor), por isso que, geralmente falando, somos por natureza propensos á piedade e compaixão, não devemos já negar em absoluto que uma tal perfeição se compreende na lei natural.
Vejamos agora outro ponto, e é, que males brotam quando a gente se aparta muito da lei natural. Dissemos que há um laço natural de amor entre os pais e os filhos, entre os irmãos e entre os amigos. Este laço desata-o e desfá-lo a lei positiva, seja ela a de Moisés ou a de qualquer outro, quando ordena que o pai, o irmão, o cônjuge, o amigo, mate ou traia por amor da religião o filho, o irmão, o cônjuge, o amigo; e uma lei assim quer uma cousa superior ao que pode ser efectuado por criaturas humanas, e que, se se efectuasse, seria o maior atentado contra a Natureza, sendo que a Natureza tem horror a semelhantes actos. Mas para que é lembrar estas cousas, quando os homens levaram a insânia ao ponto de oferecerem os próprios filhos em holocausto aos ídolos a que rendiam vaníssimo culto, apartando-se tanto daquela lei natural e manchando tão feiamente os sentimentos maternos, filhos da Natureza! Quanto mais agradável não fora, se os homens se tivessem conservado dentro das raias marcadas pela Natureza e não houves­sem feito invenções tão hediondas! Que direi dos enormes terrores e ansiedades em que a maldade de uns homens tem lançado os outros homens? E de tais males bem podia estar livre todo o indivíduo; bastaria que escutasse a voz da Natureza, a qual desconhece absolutamente semelhantes cousas. Quantos não são os que desesperam de salvar-se, os que, imbuídos cm varias crenças, padecem martírios, passam espontaneamente uma vida toda de amarguras, mortificando lastimosamente o corpo, buscando solidões e lugares apartados da conversação humana, vexados perpetuamente de tormentos interiores, pois que já pranteiam como actuais os males de que se arreceiam no futuro! Estas e outras calamidades sem conto foi uma falsa religião, maldosamente inventada pelos homens, a que as acarretou à humanidade. Não sou eu próprio um, entre muitos, que fui grandemente enganado por tais impostores e, acreditando neles, me deitei a perder? Falo por experiência. Mas objectam: Se não houver outra lei mais que a natural, se os homens não souberem pela fé que há outra vida, e não temerem as penas eternas, que motivo há para que não se tornem perpetuamente culpados de malfeitorias? Vós, excogitando tais invenções (quiçá por qualquer outro motivo oculto; que é de temer que por interesses vossos quisésseis pôr uma carga sobre os mais), assemelhais-vos aos que, para amedrontarem as crianças, fingem papões ou fantasiam nomes aterradores, até que as pobres crianças, batidas do medo, se submetam á vontade deles, escravizando, enfadadas e tristes, a vontade própria. Mas estes meios são profícuos enquanto a criança é criança: tão depressa como abre os olhos da inteligência, ri-se do engano e já não tem medo do papão. Neste caso estão as vossas invenções ridículas, que só a crianças ou a bolonios podem meter medo; mas as outras pessoas que vos conhecem as manhas, riem-se de vós. Ponho agora de parte o tratar do justificado de semelhante fraude, quando vós mesmos, os autores de tais invenções, tendes uma regra de direito que diz que não se hão-de fazer males para virem bens, a não ser que não ponhais na conta de males o mentir com grave prejuízo dos outros, dando aos fracos ocasião de perderem o juízo. Ora se em vós houvesse uma sombra sequer de religião ou de temor, infalivelmente não deveríeis ter tido pouco medo, quando introduzistes no mundo tantos males, quando levantastes tantas discórdias entre os homens, quando criastes tantas instituições iníquas e ímpias, a ponto de não duvidardes açular impiamente os pais contra os filhos, e os filhos contra os pais.
Uma pergunta desejaria eu fazer-vos, e é, se quando, em razão da malícia dos homens, fazeis essas invenções a fim de conterdes dentro dos termos do dever, com terrores imaginários, os homens, que doutro modo não observariam o bem, vos acode ao pensamento que vós sois semelhantemente pessoas cheias de malícia, que não sois capazes de fazer nada bom; nem pôr em obra senão perpetuamente o mal, prejudicar os mais, não usar de misericórdia para com ninguém. Já vejo que vós vos encolerizais contra mim, que ousei fazer-vos uma pergunta assim, e que cada um de vós batalha denodadamente em defesa da justiça dos seus actos. Nenhum há que não diga que é piedoso, misericordioso, amante da verdade e da justiça. Consequentemente, ou não falais verdade dizendo de vós o que dizeis, ou acusais falsamente a malícia humana, á qual quereis dar remédio com os vossos papões e terrores fantásticos; injuriosos para com Deus, que apresentais aos olhos dos homens como cruelíssimo algoz e horroroso torturador, injuriosos para com os homens, que pretendeis terem nascido para tão deplorável miséria, como se não bastassem os desares que sucedem na vida a cada um de nós. Mas conceda-se que é grande a malícia humana — o que eu próprio confesso, e de que vós mesmos me servis de testemunhas, sendo maliciosos em extremo, aliás não poderíeis idear tais invenções —; procurai então remédios de grande eficácia, que sem maior dano façam desaparecer esta doença de todos os homens em geral, e deixai-vos de papões, que só têm efeito em crianças e tolos. Se, porém, esta enfermidade é incurável no género humano, deixai-vos de mentiras e não prometais, á guisa de médicos charlatães, a saúde que não podeis dar. Contentai-vos com estabelecer entre vós leis justas e racionais, premiar os bons, punir devidamente os maus, livrar de violências os que padecem violências, para que não bradem que neste mundo não se faz justiça e que não há quem salve o fraco das garras do forte. Sem dúvida, se os homens quisessem nortear-se pela recta razão e viver em conformidade com a Natureza, amar-se-iam todos uns aos outros; cada qual, na proporção de suas forças, acudiria á desventura do próximo, ou pelo menos ninguém ofenderia outrem só pelo gosto de ofender. Proceder de modo contrário é proceder contrariamente á natureza humana; e se muitos destes actos se praticam, e porque os homens têm inventado diversas leis opostas á Natureza, e uma pessoa irrita a outra com as suas malfeitorias. Muitos há que andam hipocritamente, fingindo-se por extremo religiosos, e iludem os incautos cobrindo-se com a capa da religião para apanharem os que podem. Semelhante gente pode bem comparar-se ao ratoneiro nocturno, que insidiosamente acomete quem está adormecido e não espera por tal. Andam sempre a dizer: sou judeu, sou cristão; crê em mim, não te enganarei. Ah alimárias ruins! aquele que não diz nada disto e só faz profissão de ser homem, é muito melhor do que vós. Sim! Se não quereis acreditar nele, como homem que é, podeis precatar-vos; de vós, porém, quem se há-de precatar? de vós que, embuçados na capa falsa de falsa santidade, á maneira do ladrão nocturno coando-vos pelas abertas, dais sobre os que mal precatados dormem, e os estrangulais miseravelmente!
Uma cousa entre muitas me maravilha, e é certamente para maravilhar; vem a ser, como é que os fariseus, vivendo no meio de cristãos, podem gozar de tanta liberdade que até julgam em tribunal; e na verdade posso dizer que, se Jesus Nazareno, a quem os cristãos rendem tanto culto, discursasse hoje em Amsterdão, e aos fariseus aprouvesse açoutá-lo novamente por ele impugnar as tradições dos fariseus e lhes lançar em rosto a hipocrisia, poderiam fazê-lo muito á sua vontade. Tal cousa é seguramente uma vergonha que não devia tolerar-se em uma cidade livre, que faz profissão de manter as pessoas em liberdade e paz, e todavia não as defende dos agravos dos fariseus: ora quando um indivíduo não tem quem o defenda ou vingue, não é de estranhar que procure por si mesmo defender-se e vingar os agravos recebidos.
Aqui tendes a história verídica da minha vida; pus-vos diante dos olhos o papel que representei neste vaníssimo teatro do mundo na minha vida tão vã e instável. Agora, filhos dos homens, julgai com justiça e, despidos de todo o afecto, com isenção, proferi a vossa sentença conformemente á verdade, que isto é, sobre tudo, digno de homens que são verdadeiros homens. E se alguma cousa encontrardes que vos force á compaixão, reconhecei e deplorai a desventurada condição humana, de que também vós participais. E para que nem esta circunstância fuja ao vosso conhecimento, ficai sabendo que o nome que eu tinha quando cristão em Portugal, era Gabriel da Costa; entre os judeus para o meio dos quais oxalá eu nunca tivera vindo, fui, com leve alteração, chamado Uriel.

(Tradução de A. Epiphanio da Silva Dias em Uriel da Costa, Espelho da vida humana, Lisboa, Impr. Lucas, 1901, 36 págs. )

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