quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Ler é bom... mas ler o que?


Ler é bom... mas ler o que?



Vejo muitas campanhas incentivando a leitura de livros, que tal prática é forma de "criar bons cidadãos, incentiva o raciocínio e a imaginação" . Eu também creio que isso seja verdadeiro, mas não de qualquer jeito, ou seja, não é o fato de ler qualquer livro que vá formar bons cidadãos e ajudarão ao amadurecimento intelectual das pessoas.

Mas o que as pessoas estão lendo? Livros que estão sempre em evidência na mídia são de ficção, com contos de bruxos, magos, fantasmas e coisas do gênero, fazendo as pessoas "viajarem" num mundo de fantasias! E outro gênero literário que está no topo de vendas é o de auto-ajuda. Na minha opinião, estes dois gêneros literários (ficção e auto-ajuda) têm, pelo menos um ponto em comum: o de misturarem o que é real (fato) com imaginário e obscuro. Poço citar duas obras que causaram muito impacto: "O código da Vinci" de Dan Brown e "O Segredo" de Rhonda Byrne.

"O código da Vinci" tornou-se, para muitos, um livro de História, uma fonte de referencia. Nele, Brown coloca de uma forma romanceada algumas teorias como se fosse fatos comprovados, como a de que Jesus e Maria Madalena tivessem se casado e tiveram uma filha. A fonte pela qual Brown coloca tal hipótese é um evangelho apócrifo de Filipe, no qual afirma que Jesus preferia a discipula Madalena aos outros apóstolos, e que estes ficavam enciumados. O problema é que este evangelho de Filipe é muito posterior aos tempos de Jesus (cerca de 200 anos), então não se trata de uma fonte fiel para afirmar tal tese. Não estou nem afirmando nem negando que Jesus teve um relacionamento com Madalena, pois não há documentos históricos para confirmar ou negar tal fato, e talvez nunca teremos. O que de fato quero expor é que Brown misturou acontecimentos com hipóteses e imaginações, de tal maneira que o leitor que não tem um conhecimento de história que toma tudo o que está no "Código" como se fosse real, tomado como um verdadeiro livro de história, que mais é estória...

Outro grande best-seller é o livro da filósofa australiana Rhonda Byrna, "O Segredo". O segredo da humanidade, segundo a autora, foi descoberto por grandes gênios, como Sócrates, Aristóteles, Platão, Bethoven, Einstein, entre outros e que este segredo era a fonte para a felicidade. "O segredo é a lei da atração", diz Byrne, com colaboração de homens que dizem conhecer o segredo. A base de toda a filosofia d' O Segredo é de que nosso cérebro funciona como uma antena e que tudo o que queremos temos que pensar na mesma frequência para obtê-las. E ainda mais: que a partir dos pensamentos este altera todo o Universo (isso mesmo, o Universo) e que este passará a trabalhar em favor da nossa vontade ( e interessante que não importa o pensamento de outras pessoas). Para dar aval a todo esse "Segredo", diz que tudo é amparado pela Mecânica Quântica, e dizem contar em seu grupo a presença dos "melhores físicos quânticos do mundo". Primeiramente, a mecânica quântica NÃO dá suporte nenhum aos que eles dizem, o que ocorre é uma deturpação do seu ponto principal: que é do fato do observador interferir na experiência, mas NÃO segundo a vontade do observador, como afirmam os físicos do segredo. E outra coisa, os ditos físicos NÃO SÃO de grande relevância acadêmica como os autores afirmam. O "grande Segredo" é escrever livros com dizendo que é pensando que se ganha tudo o que quer, com palavras bonitas, dificeis, que não dizem nada com nada e venderá milhões de livros! Por isso Ana Maria Braga fala sempre do Segredo, já deve ter vendido muitos livros com DVD's, ela entendeu muito bem o Segredo...


Por que os autores de tais gêneros literários vendem vendem tanto?

Primeiro colocam uma capa bonita, de luxo, feito de papel de boa qualidade.
Segundo: misturam coisas certas com erradas, de tal modo que as pessoas não sabem distinguir quem é quem.

Depois se propoem a querer apresentar fórmulas mágicas, fáceis para se resolverem problemas e obter as coisas, como se o leitor fosse o centro do Cosmo, e que tudo responde à sua vontade. Esta é bem atrativa pois o ser humano esta sempre inclinado a acreditar que o mundo gira ao seu redor, que ele é especial para D'us.

Todo mundo quer aprender e obter as coisas a base de pouco esforço.

É fácil entender que os tipos de livros que estão entre os mais vendidos, e ocupam muito mais espaço nas prateleiras das livrarias comparado com os de filosofia, física, matemática e biologia.
Muitas pessoas não querem sair de suas ilusões e que tenha ameaçado seu "Castelo de sonhos" desabando ao ler um Spinoza que nos mostra que somos uma parte da Natureza, de que não existem milagres, que não são rituais que tornam uma pessoa melhor; ou Darwin que nos mostrou que somos resultado de uma cadeia de evolução do mais apto e que somos provenientes de outras espécies ditas inferiores; Galileu que tirou a Terra do centro do Universo; e Giordano Bruno ao falar que o Universo não tem centro e que nós não somos únicos e especiais, e que podem existir outros lugares no Cosmo que existe seres como nós. Ou Carl Sagan afirma que somos uma poeira no Universo...


Como identificar os melhores livros?

Se um livro for best seller, sucesso de vendas, se estiver bem na entrada da livraria com muitos exemplares e em edição de luxo é LIXO. O livro bom é lido por poucos, raramente reeditado, raramente encontrados. São livros maçantes, sem sensacionalismo, frios.
Como o vinho de qualidade, quanto mais antigo de safra boa melhor.

sábado, 15 de novembro de 2008

A prática do bem

A prática do bem



A prática do bem é pregada por todas as seitas, segmentos religiosos e que, tais práticas nos trarão recompensas futuras, seja nesta vida ou numa possível existência pós-morte. Dizem os pregadores: "D'us está olhando os seus atos. Ele te recompensará." O que podemos notar que as boas ações praticadas pelas pessoas seguidoras de tais religiões apenas o fazem por ser uma obrigação religiosa e outros de forma interesseira ou por causa de medo. Interesseira porque espera recompensas numa melhoria na qualidade de vida, no aspecto material, ou ir para o paraíso. E outros, fazem o bem para fugir do mal, com medo de castigos. Em ambos os casos, não são atitudes sinceras. Não há o prazer da prática das virtudes.

"A recompensa da virtude é a virtude em si mesma." como disse Spinoza. Na mesma linha, Maimônides considera que a fé em D'us deve ser totalmente desinteressada, ou seja, não esperar nenhuma recompensa e, acrescentemos, nenhum castigo por suas ações. O exercício da justiça, da verdade e do amor ao próximo constituem, por si sós, sua recompensa. Mas, infelizmente, muitos não conseguem ver, pela luz da razão, que respeitar o próximo, não cometer crimes contra os semelhantes são fundamentais para a felicidade e a harmonia social. Uriel da Costa, em seu "Exemplo da vida humana" que é uma lei natural e que aquele que não gostam o que façam consigo não vai fazer contra os outros. Mas para os indivíduos que não são capazes de enxergar isso, é aceitável a fé interesseira, ou seja, a fé daquele que crê na recompensa por suas boas ações e no castigo pelas más, única forma de fé acessível ao comum das pessoas. O homem em busca da verdade deveria se esforçar e, no limite de seus recursos, procurar aproximar-se da fé desinteressada.

Para expressar bem o ideal de pensamento, segue duas passagens da personagem Branca, da obra "O Santo Inquérito" de Dias Gomes, após salvar o padre de um afogamento. Ela, posteriormente, seria acusada como herege e morta na fogueira, por acusação de heresia.

"Acho que as boas ações só valem quando não são calculadas. E D'us não deve levar em conta aqueles que praticam o bem só com a intenção de agradar-lhe."

"Não foi querendo agradar a D'us que eu me atirei ao rio pra salvá-lo. Foi porque isso me deixaria satisfeita comigo mesma. Por que era um gesto de amor ao meu semelhante. E é o amor que a gente se encontra com D'us. No amor, no prazer e na alegria de viver."

Autoridades religiosas X autoridade natural

Autoridades religiosas X autoridade natural



Nos ramos do conhecimento humano, as que estão muito afastadas são a religião (teologia) e a ciência (física, química e biologia) e a filosofia.

A distância entre a ciência e a teologia se acentuou nos séculos XVI e XVII com o avanço das descobertas e observações astronômicas e as teorias a partir destas, com Galileu Galilei, Johannes Kepler que perceberam que o sistema geocentrico (Terra no centro do Universo) de Ptolomeu, adotado pela Igreja, não condizia com a verdade. Galileu foi obrigado a abjurar de suas idéias e ficou em prisão domiciliar até sua morte. Em 1600, Giordano Bruno (que foi mais ousado, ao dizer que nem mesmo o Sol era o centro do Universo, e que este era infinito e afirmou que existem outros sóis e estes eram orbitados por planetas habitados) foi queimado vivo pela Inquisição. Como vimos, as evidências não eram levadas em consideração, quem dizia o que era “verdade” e “certo” eram as autoridades eclesiásticas.

Então, qual a diferença entre as autoridades religiosas e a autoridade natural?
Primeiramente, as autoridades religiosas não se valem de demonstrações, e sim da imposição de um conselho. Se voltarmos no 1º século da era comum (era cristã), não existia uma bíblia como a conhecemos hoje. O que havia eram vários textos, de autores, de sábios (rabinos) e avaliavam quais textos seriam “inspirados por D'us”. Muitos textos foram descartados por não apresentarem uma sincronia com a Torah, e não passaram pelo crivo sacerdotal, e ficaram de fora do canone hebraico. Por tanto, quem decidiu quais textos eram inspirações foram as autoridades estabelecidas. O mesmo ocorreu no século III, quando Constantino se converteu ao cristianismo e, consequentemente, o Império Romano, escolheram qual seria seu canone e discartaram todas as outras correntes que divergiam da adotada pelo seu Império.
Na época de Galileu, o que valia a palavra da Igreja, quer dizer do Papa. Os dogmas, de qualquer religião, não são passíveis de discussão. O dogma da concepção virgem de Maria só foi posta no final do século XIX, após o Papa ter a “iluminação” de que isso condizia com a verdade irrevogável.

A ciência (física, química e biologia) não tem como autoridade um homem, um papa ou um conselho, que vai dizer o que é certo ou errado. A autoridade, para a ciência, é a própria Natureza. Como bem escreveu Werner Heisenberg, um dos pais da Mecânica Quântica, em seu livro “Física e Filosofia”: “(...) Há uma característica da ciência que a torna mais apropriada do que qualquer atividade para criar a primeira ligação sólida entre tradições culturais e diferentes. Esse tributo reside no fato de as decisões últimas, acerca do valor de um determinado trabalho científico sobre o que esta correto ou incorreto no trabalho em questão, não dependem de qualquer autoridade humana. Pode, às vezes, ocorrer, que muitos anos se passem até que se conheça a solução de um problema, antes que se possa distinguir entre verdade e erro; mas, em definitivo, as questões dicidir-se-ão e as decisões, a essa respeito, não serão tomadas por um grupo qualquer de cientistas mas sim pela própria Natureza.(...)”

Os líderes religiosos arrogando-se de que foram “escolhidos por D'us”, que Ele lhes falam e decidem , segundo seus interesses, o que é verdade ou não, ao contrário da ciência que, quem decide o que é certo ou errado é a Natureza, ou seja, o próprio D'us.

Na época de Galileu, falava-se de duas modalidades de revelação de D'us: uma estava inscrita na Bíblia e a outra encontrava-se no livro da Natureza. As Santas Escrituras foram escritas pelo homem e, assim, estavam sujeitas a erro, enquanto que a Natureza era a expressão diretas das intenções divinas. E como escreveu Uriel da Costa que “D'us , como autor da Natureza não poderia estar em contradição consigo mesmo”. Por isso que, os adeptos da ciência natural podem argumentar que as experimentações revelam uma verdade inegável; que não se pode admitir que qualquer autoridade humana arrogue-se ao direito de decidir o que realmente ocorre na Natureza e que, a decisão final a respeito cabe a Ela e, nesse sentido, a D'us.

Revendo as orações

Revendo as orações



Em outra oportunidade, falei sobre as orações, a qual obtive muitas refutações com citações bíblicas e de outros textos.

Muita gente acha que, para resolver os problemas de suas vidas, devem ficar orando ou rezando, horas e horas, repetindo várias vezes as mesmas palavras e pedidos. Os sacerdotes católicos aparecem rezando o terço, repetindo 10 vezes os mesmos refrões de manhã, a tarde, a noite, coisas do tipo “Obrigado Jesus”, entre outras. Por que repetir tantas vezes? O terço que repete 100 ave-marias, 10 pai-nossos. Por que tal exautão de repetições? D'us precisa que repita tantas vezes os pedidos para que Ele poça escutar? Esquecem eles, os padres e sacerdotes de todas as denominações cristãs o que Jesus mesmo disse: “Nas vossas orações, não multipliqueis as palavras, como fazem os pagãos que julgam que serão ouvidos à força de palavras. Não os imiteis, porque vosso Pai sabe o que é necessário, antes que vós lhos peçais (Mateus6:5-8)

E os evangélicos, que fazem cultos com shows, espetáculos, cantorias, cada artista expondo suas “devoções”? Pulam, gritam, oram em voz alta, na frente de todos para demonstrarem sua “fé”. Isso é diamentralmente contrário ao que Jesus recomendou: “ Quando orardes, não façais como hipócritas, que gostam de orar de pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo: já receberam sua recompensa. Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo...” (Mateus 6).

O filósofo judeu Maimônides preconizava uma oração curta, tal como estava codificada no Talmud, sem as numerosas adições impostas pelo uso, em particular, textos, nem músicas e reprovava as efusões públicas de emoção religiosa.

Se a oração é para D'us, e Ele está em todos os lugares, para que é necessário fazer as orações em templos ou lugares públicos? Se Ele sabe tudo, antes das coisas acontecerem, por que pedir? Se Ele sabe a nossa essência, nosso mais íntimo pensamento (D'us nos conhece melhor que nós a nós mesmos, como falou Agostinho) por que gritar, cantar, berrar em orações? Refletindo sobre essas coisas, podemos tirar grandes conclusões...

domingo, 26 de outubro de 2008

Um manifesto contra a intolerância

Hoje não estou escrevendo um texto com minhas palavras, mas apenas um texto do século XVII, que expressa a intolerância, que ainda que persiste em nosso mundo. Uriel da Costa foi uma das vítimas da intolerância religiosa, assim como Giordano Bruno, pouco tempo antes.

Uriel da Costa (1585-1640), filósofo e livre pensador. Nascido em família marrana, de pai católico devoto e mãe secretamente judia, estudou na Universidade de Coimbra e entrou para o serviço eclesiástico no pequeno escalão. Em sua autobiografia diz ter-se voltado para o judaísmo após uma longa leitura da Bíblia. Tendo convertido sua família ao "seu" judaísmo, foge da Inquisição, instala-se em Amsterdã para praticar livremente sua religião e descobre que seu judaísmo difere sensivelmente do judaísmo rabínico. Ele critica a rigidez e o ritualismo dos "Fariseus de Amsterdã" e discute a doutrina da imortalidade da alma que não lhe parece ser explícita na Bíblia. Uriel da Costa é considerado a vítima por excelência do obscurantismo e da intolerância religiosa.



ESPELHO DA VIDA HUMANA

Vi a luz em Portugal, na cidade do Porto. Os meus progenitores pessoas bem nascidas, descendiam de judeus. que em tempo haviam sido forçados neste reino a abraçar a religião cristã. Meu pai era verdadeiro cristão, observantíssimo dos preceitos da honra e grande prezador da honestidade de costumes. Em sua casa fui criado fidalgamente. Não faltavam servos e na cavalariça cavalo de boa raça espanhola para exercícios de equitação, arte cm que meu pai era versadissimo. e eu de longe lhe seguia as pisadas. Depois de instruído em algumas disciplinas que os mancebos de boa família costumam aprender, passei a estudar Direito. No que toca á índole e condição, era eu por natureza mui piedoso e tão propenso á compaixão, que se alguma vez ouvia contar uma desgraça acontecida a outrem, de modo nenhum podia conter as lágrimas. A vergonha era a tal ponto inata em mim, que de nenhuma cousa eu tinha tanto medo, como do que deslustra o nome. O meu coração não agasalhava nenhum sentimento baixo. e não deixava de abrir a porta á ira, se a causa justa o requeria. Assim que eu era na verdade adverso aos soberbos e insolentes que por des­prezo e violência costumam agravar os seus semelhantes, desejando apadrinhar os fracos e pondo-me de preferência ao lado deles. Pelo que respeita a religião, padeci na minha vida cousas inacreditáveis. Fui criado, segundo o costume daquele reino, na religião católica, e sendo já rapaz feito, com grande temor da condenação eterna, desejava observar pontualmente todos os preceitos religiosos. Aplicava-me á leitura do Evangelho e de outras obras espirituais, percorria as Sumas dos confessores, e quanto mais me entregava a estes estudos, maiores dificuldades se me alevantavam. Acabei por cair em inextricáveis enleios, em ansiedades e aperturas de coração. Ia-me finando de melancolia e mágoa. Antolhou-se-me impossível confessar os pecados segundo os termos da Igreja romana, de modo que pudesse obter dignamente a absolvição e cumprir tudo quanto era requerido. A consequência foi desesperar da salvação, se a salvação tinha de ser obtida mediante a observância de tais normas. Ora sendo difícil poder apartar-me de uma religião a que desde o berço fora acostumado e que pela fé, já tinha deitado em mim fundas raízes, comecei a pensar — foi isto à volta dos vinte e dois anos que poderia talvez ser menos verdade o que se dizia de uma outra vida, e a ter incertezas sobre se a fé prestada a tais dogmas se casava bem com, a razão, por isso que a mesma razão me ditava e de continuo me metia pelos ouvidos dentro muitas cousas que fortemente contrariavam aqueles dogmas. Entrado nesta dúvida assosseguei, e fosse o que fosse, assentava comigo que por tal rota não podia alcançar a salvação da alma. Por esse tempo cursava eu as aulas de Direito, segundo já disse, e andando nos vinte e cinco anos, como se me deparasse ensejo, obtive um beneficio eclesiástico, a tesouraria de uma Colegiada.
Não tendo, porém, encontrado repouso na religião católica romana, e desejando estar abraçado a alguma religião, cri que sabia que entre cristãos e judeus havia rijo combate, pus-me a percorrer os livros de Moisés e dos profetas, onde se me apresentavam alguma cousa que estavam em não pequena contradição com o Novo Testamento e encerravam menor dificuldade. Demais no Antigo Testamento criam tanto os judeus como os cristãos, no Novo Testamento só os cristãos. Acabei por entender, acreditando em Moisés, que devia obedecer á Lei, visto que ele afirmava ter recebido tudo de Deus, declarando-se puro mensageiro chamado pelo próprio Deus para esta missão, ou melhor, obrigado (destarte se enganam os pequeninos). Isto assentado, como quer que naquele reino não houvesse liberdade de professar de algum modo a religião de Moisés, pensei em mudar de residência, deixando a terra pátria. A este fim não duvidei resignar em favor de outrem o benefício eclesiástico, não cuidando dos proventos nem da honra que dali me vinham conformemente aos usos daquele país. Deixei também uma formosa casa de habitação, situada em uma parte magnífica da cidade e construída por meu pai. Embarcámos, pois, não sem grave risco, — os que descendem de hebreus não podem deixar o reino sem permissão especial d’el-rei — eu. minha mãe e meus irmãos, aos quais. movido pelo amor fraterno, eu comunicara o que sobre a religião me havia parecido mais consentâneo, embora tivesse dúvidas acerca de alguns pontos e esta comunicação poderia redundar em grande mal para mim: tão perigoso é naquele país falar em semelhantes assuntos! Ter minada a viagem, aportámos a Amsterdam, onde encontrámos os judeus vivendo em liberdade. Em obediência á Lei, cumprimos para logo o preceito da circuncisão.
Ao cabo de alguns dias tinha-me a experiência mostrado que os costumes e ordenações dos judeus estavam longe de casar-se com os preceitos de Moisés. Ora se cumpria observar a Lei com pureza, segundo ela própria requer, mal andaram os chamados Doutores dos judeus com tantas invenções, que de todo o ponto destoam da Lei. Assim que não pude acabar comigo que me contivesse, antes entendi que faria cousa do agrado de Deus, se defendesse a Lei com isenção. Estes Doutores judaicos do tempo presente – que ainda conservam os seus costumes e condição maldosa, porfiando galhardamente em defesa da seita e das instituições dos abomináveis fariseus, não sem esperança de benesses pessoais e, segundo já outrora lhes foi imputado fundamentadamente, para ocuparem as primeiras cadeiras no templo e terem as primeiras saudações na praça pública – de modo nenhum vieram em que, sequer nas cousas mais pequenas, eu me apartasse deles, pretendendo que sem desvio algum lhes fosse na esteira; de contrário, ameaçaram-me com a excomunhão e privação de toda a comunicação com os fieis nas cousas divinas e humanas. Como, porém, ficasse muito mal virar as costas diante de tal medo quem por amor da liberdade deixara a pátria e desprezara outros proveitos, e o submeter-me a homens em tal caso, mormente quando eles não tinham poder legítimo, fosse acto de pouca religião e impróprio do homem digno deste nome, decidi antes padecer tudo e permanecer firme no meu propósito. Consequentemente fui por eles excomungado e excluído da comunicação com todos os fieis, e os meus próprios irmãos, de quem anteriormente eu fora mestre, com medo deles passavam por mim na rua sem me saudar.
Nestas circunstâncias resolvi escrever uma obra em que mostrasse a justiça da minha causa e provasse claramente à luz da própria Lei o infundado dos ensinamentos e práticas dos fariseus e o contraste em que as suas tradições e instituições estavam com a lei de Moisés. Principiada a obra, vim também – cumpre referir tudo como se passou, sem refolho e com verdade – a abraçar, resoluta e deliberadamente, o parecer daqueles que assentam serem temporais o prémio e a pena da Lei velha, e não crêem em uma outra vida e na imortalidade da alma, estribando-me, para não falar doutras razões, em que a Lei de Moisés guarda absoluto silêncio sobre estes pontos, e aos que observam ou quebrantam os seus preceitos, só promete prémio temporal ou pena temporal. Grande foi o regozijo dos meus inimigos ao saber que eu adoptara este parecer, julgando terem alcançado só por este facto larguíssima defesa perante os cristãos, que em virtude de fé especial fundada na Lei evangélica, onde se faz menção expressa da felicidade eterna e das penas eternas, crêem e reconhecem a imortalidade da alma. Com este intuito e para me taparem a boca nos demais pontos e me tornarem odioso entre os próprios cristãos, antes de entrar no prelo o meu escrito, tiraram a lume um opúsculo, da mão de certo médico, com o título De immortalitate animarum. Na sua obra o médico fartava-se de atassalhar-me, como que eu defendesse a seita de Epicuro pois quem negava a imortalidade da alma, pouco faltava para negar a existência de Deus. — Neste tempo eu tinha má opinião daquele filósofo, e fundando-me na informação parcial de outrem, dava sentença temerária contra uma parte ausente sem a ouvir; mas desde que soube o conceito que dele faziam algumas pessoas amantes da verdade, e tive conhecimento da sua doutrina real, sinto haver em tempo chamado louco e insano um tal sujeito, de que ainda não posso formar juízo cabal por me serem desconhecidos os seus escritos. — Os filhos dos ditos meus inimigos, industriados pelos rabinos e pelos pais, juntavam-se em magotes pelas ruas e a brados praguejavam-me e irri­tavam-me com toda a casta de impropérios, apelidando-me, voz em grita, de herege e de apóstata. As vezes até se ajuntavam diante da minha porta, apedrejavam-na, e tudo tentavam para me perturbarem, de jeito que nem na minha própria casa pudesse lograr sossego. Publicado que foi aquele livro contra mim, para logo apercebi-me para a defesa e escrevi um opúsculo em resposta a ele, impugnando com todas as forças a imortalidade da alma e tocando de caminho alguns pontos em que os fariseus se apartam de Moisés. Tanto que esta minha obra saiu a público, ajuntaram-se os senadores e o grão-rabino dos judeus e propuseram uma acusação contra mim perante a autoridade civil, alegando que eu havia escrito um livro em que negava a imortalidade da alma e não só os ofendia a eles mas até abalava o edifício da religião cristã. Por efeito desta denúncia fui metido na cadeia, e depois de lá estar oito para dez dias soltaram-me debaixo de fiança. Aquela autoridade exigia de mim o pagamento de uma multa, e em cabo fui condenado a pagar-lhe trezentos florins e ao perdimento dos exemplares da obra.
Depois, com o rodar do tempo, como quer que a experiência e os anos descubram muita coisa e consequentemente dêem volta ao pensamento do homem (seja-me permitido, mais uma vez o digo, falar com franqueza; e efectivamente, porque não há-de ser lícito a quem, por assim dizer, escreve o seu testamento para deixar aos homens as contas da sua vida e um exemplo verdadeiro das desventuras humanas, porque não há-de ser licito, digo, contar a verdade?), entrei a ter dúvidas sobre se a lei de Moisés deveria ser tida por lei de Deus, por isso que muitas cousas havia que aconselhavam, ou melhor, forçavam a dizer o contrário. Assentei por fim que a Lei de Moisés não era de Deus, mas somente invenção humana, como outras sem conto que tem havido no mundo. É que muitos pontos brigavam com a lei da Natureza, e Deus, autor da Natureza, não podia estar em contradição consigo mesmo, e esta loia se propusesse aos homens praticarem actos contrários à Natureza, de que se dizia autor. Definido este ponto no meu espirito, disse eu comigo: Que aproveita (oxalá nunca tal ideia houvesse surgido na minha mente) permanecer eu neste estado até à morte, separado da comunicação com estes Padres e com este povo, mormente sendo eu estrangeiro nestas paragens e não tendo trato com os cidadãos, cuja língua até desconheço? Melhor será voltar a comunicação com eles e seguir-lhes as pisadas como eles querem, fazendo, segundo diz o rifão, de macaco entre os macacos. Movido desta consideração, tornei a comunicar com eles, retratando as minhas expressões e subscrevendo as opiniões deles, havendo já quinze anos que deles vivia separado. Desta reconciliação foi, por assim dizer, medianeiro um meu primo da parte de meu pai.
Decorridos dias, fui denunciado por um rapazito, filho de minha irmã, que eu tinha em casa, com respeito às comidas, ao modo de prepará-las, e a outras cousas, donde se inferia que eu não era judeu. Desta denúncia nasceram novas e violentas guerras. Aquele meu primo, que, segundo já disse, fora o medianeiro da reconciliação, entendendo que o meu procedimento redundava em vergonha sua, soberbão e arrogante que era, sobremaneira imprudente e também sobremaneira impudente, abriu contra mim guerra declarada, e levando após si todos os meus irmãos, não deixou por tentar meio algum que pudesse por alguma forma contribuir para a ruína total da minha honra, dos meus haveres e consequentemente da minha vida. Foi ele quem desbaratou o casamento que eu estava já para contrair (a este tempo era eu viúvo); fez com que um meu irmão retivesse os meus bens que tinha em seu poder, e destruiu as relações que entre nós havia, circunstância que me causou um prejuízo indizível em consequência do estado em que as minhas cousas se achavam. Baste agora dizer que foi ele o mais encarniçado inimigo da minha honra, da minha vida e dos meus bens. Sobre esta guerra, por assim dizer, doméstica, havia outra pública, a dos rabinos e do povo, que principiaram a ter-me novo ódio e cometeram contra mim muitos desaforos; assim que merecidamente eu os aborrecia. Entretanto sobreveio novo acontecimento. Acaso conversei com dois sujeitos, vindos de Londres para esta cidade, um italiano, o outro espanhol, ambos cristãos velhos; declarando-me serem pobres, pediram-me o meu conselho sobre se haviam de aliar-se aos judeus e converter-se ao judaísmo. Aconselhei-os a que tal não fizessem e se conservassem como estavam, pois não sabiam o jugo que iam por sobre o pescoço. Em todo o caso advertia-lhes que não falassem em mim aos judeus; assim prometeram fazer. Estes homens ruins, com os olhos no vergonhosíssimo proveito que esperavam colher, agradeceram-me descobrindo tudo aos meus caríssimos amigos, os fariseus. Nisto congregaram-se os príncipes de Sinagoga, inflamaram-se os rabinos, e a gentalha petulante bradou rijo: Crucifica-o, crucifica-o. Fui chamado perante o Grande Conselho; propuseram as queixas que tinham contra mim em voz baixa e triste, como se se tratara de um caso de morte, e por fim declararam que, se eu era judeu, devia acatar e cumprir a sentença que proferissem. aliás tornaria a ser excomungado. Ah preclaros juízes! Sois juízes para me fazerdes mal; mas se eu carecer do vosso tribunal para me livrardes da violência de outrem e me assegurardes a minha inviolabilidade, então não sois juízes, senão vilíssimos escravos cativados a poder alheio. Qual é a vossa sentença a que quereis que eu me submeta? Então foi-me lido um papel em que se dizia que eu tinha de entrar na Sinagoga vestido de luto, com uma vela negra na mão e vomitar publicamente, na presença da assembleia, certas e determinadas palavras, escritas por eles, bem feias, em que levavam às nuvens as iniquidades por mim cometidas. Depois havia de consentir em ser publicamente açoutado na Sinagoga com um azorrague de couro, em seguida prostrar-me à entrada da própria Sinagoga para todos passarem por cima de mim, e demais jejuar em dias determinados. Acabada que foi a leitura, incendiaram-se-me as entranhas e ardia por dentro em fogo de cólera inextinguível; contudo, sofreando-me, respondi chãmente que não podia cumprir semelhantes imposições. Ouvida a minha resposta, determinaram excomungar-me segunda vez, e não contentes com isto, quando eu passava na rua, muitos deles cuspiam fora e o mesmo faziam os filhos industriados por eles; só não me apedrejavam, porque não podiam. Outros sete anos durou esta guerra, e no correr deste tempo padeci cousas que não se acreditam. Guerreavam-me duas hostes, uma a do povo, outra a dos parentes, que buscavam a minha ignomínia para de mim tirarem vingança. E os parentes não tiveram descanso enquanto não me desalojaram da posição anterior. Disseram entre si: Ele nada fará, se não for obrigado, e cumpre que seja obrigado. Se estava enfermo, via-me sozinho. Se alguma outra calamidade pesava sobre mim, contavam-na entre os seus maiores desejos. Se dizia que se tirasse dentre eles um juiz que decidisse a questão entre nós, nada queriam menos. Tratar de tal pendência em juízo, passo que também tentei, dava muito incómodo e enfado, sendo que consumia estiradíssimo tempo o recorrer aos tribunais, onde, afora muitos outros encargos, há constantemente tantas delongas e adiamentos. Disseram-me muitas vezes: Submete-te a nós, pois somos todos iguais e não imagines nem temas que procedamos mal contigo. Diz enfim uma vez, que estás pronto a cumprir o que te impusermos, e deixa-nos a nós o final, que nós faremos tudo como é bem que se faça. Eu, embora a questão versasse justamente sobre este ponto e semelhante submissão e aceitação de imposições arrancada à força fosse para mim grandíssima vergonha, contudo para levar as cousas até o cabo e com os meus olhos verificar-lhes o desfecho, venci-me a mim próprio determinando-me animosamente a aceitar e experimentar quanto eles quisessem. De feito, no caso de as imposições serem feias e desonrosas, ainda mais justificavam a minha causa contra eles e manifestavam as disposições dos ânimos deles para comigo e a sua lealdade, e patenteava-se de vez o hediondo e execrando dos costumes desta gente que tão indecorosamente abusa das pessoas mais honestas como se fossem os mais vis escravos. Pois cumprirei, disse eu, tudo quanto me impuserdes. Agora dai-me atenção, quantos sois honrados, cordatos e humanos, e meditai profundamente, uma e muitas vezes, a sentença que executaram em mim, de todo inocente, eles, pessoas privadas, sujeitas ao poder de outrem.
Entrei na Sinagoga, que estava cheia de homens e de mulheres, e quando foi tempo, subi ao taburno de madeira que está no meio da Sinagoga para o serviço dos sermões e demais actos do culto; li em voz alta o escrito, redigido por eles, em que eu confessava que merecia morrer mil vezes pelos pecados por mim cometidos, convém a saber: não ter guardado o sábado, ter violado a fé a ponto de chegar a aconselhar os mais a que não viessem para o judaísmo; e que em satisfação de tais culpas eu queria obedecer ao que me ordenassem e cumprir as penas que me impusessem, prometendo não tornar a cair de futuro em semelhantes iniquidades e malfeitorias. Acabada a leitura, desci do taburno e acercou-se de mim o venerando presidente, dizendo-me ao ouvido que fosse para um outro canto da Sinagoga. Assim fiz; então o porteiro ordenou-me que me despisse. Despi-me até à cintura, atei um lenço à cabeça, descalcei os sapatos e ergui os braços, pondo as mãos em uma espécie de coluna. Chegou-se a mim o porteiro e atou-me as mãos à coluna com uma faxa. Depois vem o precentor e, pegando de um couro, deu-me trinta e nove tagantes conformemente à prática tradicional — a Lei prescreve que não sejam mais de quarenta, e sendo estes varões tão escrupulosos observadores das leis, guardam-se de cair em pecar por excesso Durante a flagelação cantava-se um salmo. No fim assentei-me no chão, e o grão-rabino — que ridículas que são as cousas do género humano! —chegando-se à minha beira, levantou-me a excomunhão; destarte já me estava aberta a porta do Céu, que antes disto, de valentemente trancada, me impedia de entrar. Depois tornei a vestir-me e fui para a entrada da Sinagoga. Prostrei-me no chão, amparando-me o guarda a cabeça. Então todos quantos desciam, passavam por cima de mim, quero dizer, levantando um pé, passavam para além junto da parte inferior das minhas pernas. Isto praticavam todos, moços e velhos — não há bugios que possam apresentar a olhos humanos nem actos mais desentoados, nem gestos mais ridículos. No fim, quando já não restava mais ninguém, ergui-me, e tendo-me limpado do pó, com ajuda daquele que estava ao meu lado — ninguém diga que eles não me honraram, pois, se me atagantavam, em todo o caso, choravam e afagavam-me a cabeça — voltei para casa. Ah gente, a mais desfaçada do mundo! Ah padres execrandos, de quem, dizeis, eu não devia temer que me fosse dado mau trato! «Espancarmos-te? Longe tal pensamento!» Avalie agora quem isto ouvir, que cena era aquela; um velho, nada baixo de condição, por natureza sobremodo envergonhado, em uma assembleia pública, despido na presença de toda a gente, homens, mulheres, crianças, e açoutado de ordem de juízes, e de juízes destes, que são mais escravos abjectos do que juízes; considere que dor não seria cair aos pés de inimigos encarniçadíssimos. de quem lhe tinham vindo tantos males, tantos agravos, e prostrar-se para ser pisado; pense-o que ainda mais é, e pode com razão chamar-se caso fora do natural, monstruosidade horrenda, de cuja vista hedionda a gente foge arrepiada — que meus irmãos, filhos do mesmo pai e da mesma mãe, criados juntos na mesma casa, trabalharam afincadamente para isto, esquecendo o afecto que eu lhes tinha — que tal sentimento era feição distintiva da minha índole e esquecendo os muitos favores que por minha intervenção haviam recebido na sua vida e que me foram pagos com ignomínias, perdas, calamidades, fealdades e abominações, tantas, que uma pessoa se corre de referi-las.
Dizem os meus nunca assaz detestados inimigos, que me castigaram justamente para exemplo dos mais, para que daqui em diante ninguém ouse ir contra as suas determinações nem escrever contra os sábios. Ah gente a mais perversa do mundo e pais de toda a mentira! Quanto mais justamente não pudera eu castigá-los a eles, para que depois vós não tivésseis tais atrevimentos contra pessoas amantes da verdade, aborrecedoras de enganos, amigas, sem distinção, de todo o género humano, de quem vós sois inimigos comuns, sendo que não tendes em estimação nenhuma os mais povos, havendo-os na conta de irracionais, e vós subis protervamente a vós sós até às nuvens, afagando-vos com mentiras, quando vós nada tendes de que com verdade vos ufaneis, a não ser que por ventura para vós seja gloria o andardes desterrados, serdes desprezados e odiados de toda a gente por causa do ridículo e exquisito dos vossos costumes, pelos quais pretendeis separar-vos do resto da humanidade. Que se quiserdes fazer glória da simplicidade da vida e da justiça, ai de vós, que palpavelmente vos mostrareis inferiores a muitos a tais respeitos. Digo, pois, que se tivera forças, eu teria podido tirar deles justa vingança dos males grandíssimos e atrocíssimos agravos de que me abeberaram e que me levaram a ganhar aborrecimento à própria existência. Sim! Que pessoa amante do honesto terá ânimo e gosto para viver uma vida coberta de ignomínia? E segundo já foi dito com acerto a urna pessoa dotada de fidalguia de sentimentos, cumpre ou viver arrazoadamente ou morrer com honra. Tanto porém a minha causa é mais justa do que a deles, quanto a verdade se avantaja à mentira. Eles pugnam pela mentira para cativarem os homens e escravizá-los; eu pugno pela verdade e pela liberdade natural do homem, a quem o que melhor fica é, livre de falsas superstições e ritos inaníssimos, passar uma vida que não seja indigna do homem. Confesso que teria sido para mim mais proveitoso, se de principio me houvera calado, e reconhecendo como anda o mundo, preferisse permanecer mudo, que assim convêm que faça quem tem de viver no meio dos homens, para não ser vítima, segundo costuma acontecer, da multidão ignorante ou de tiranos injustos, de feito cada qual com a mira nos seus interesses busca abafar a verdade, e armando laços aos pequenos, calca aos pés a justiça todavia, depois de, incautamente iludido por uma religião vã. ter descido com eles a campo, é melhor morrer gloriosamente, ou ao menos morrer sem desgosto, que, nas pessoas de bem, é o companheiro de uma retirada vergonhosa ou de uma resignação inepta. Costumam eles alegar em seu favor a vontade da grande maioria. «Tu, que és um só, deves de submeter-te a nós, que somos muitos». Amigos, é útil sem dúvida que o indivíduo se submeta à maioria, para não ser dilaniado por ela; mas nem tudo o que é útil se segue que seja belo. Belo certamente não é o retirar-se com ignominia e deixar o campo aos violentos e injustos. Deveis logo confessar que é virtude merecedora de louvor ter rosto quanto possível aos soberbos, para que não aconteça que, procedendo mal e colhendo proveito da sua maldade, se tornem cada vez mais soberbos. E formoso, na verdade, e digno de um homem piedoso e generoso fazer-se pequenino com os pequeninos, ovelha com as ovelhas; mas é sandice, é ignominioso e repreensível vestir, em combate com leões, a mansidão da ovelha. Ora se se põe entre as cousas mais formosas pelejar até morrer em defesa da pátria, por isso que a pátria é alguma cousa que nos pertence, porque razão não há-de ser belo pelejar até morrer em defesa da honra própria, que é pessoalmente nossa e sem a qual não podemos viver arrazoadamente? a não ser que, à semelhança de cerdos imundos, nos revolvamos no imundo tremedal do lucro. Mas dizem os meus detestáveis motejadores, estribando no número todo o seu direito, «O que poderias tu, que és um só, contra tantos ?» Confesso e deploro ter sido esmagado pelo número que vós sois, contudo esses vossos pensamentos e palavras ainda mais me fazem referver a cólera no meu interior e bradar que é impiedade ter piedade de ímpios, soberbos, contumazes e obstinados.
Sei bem que aqueles inimigos, para me desacreditarem perante a multidão indouta, costumavam dizer: «Ele não tem religião nenhuma; não é judeu, não é cristão, não é maometano». Olha primeiro, fariseu, o que dizes; que tu és cego, e conquanto te sobre maldade. dás entretanto topadas como um cego. Anda, diz-me, se eu fosse cristão, o que dirias? É claro que havias de dizer que eu era um abominável idólatra, e que juntamente com Jesus Nazareno, Mestre dos cristãos, havia de ser punido pelo Deus verdadeiro, de cujas bandeiras havia desertado. Se fosse maometano, também todos sabem de que honras me cumularias; e assim nunca poderia escapar à tua língua, tendo por único refúgio prostrar-me aos teus joelhos e beijar os teus execrandos pés, quero dizer, as tuas detestáveis e vergonhosas instituições. Agora suplico-te que me digas se conheces mais alguma religião além das que mencionaste, às duas últimas das quais tu, havendo-as por falsas, chamas antes cismas do que religiões. Já te ouço confessar que conheces mais uma, e é a verdadeira religião, por meio da qual os homens podem agradar a Deus. Com efeito, se todos os povos, exceptuando os judeus — que haveis sempre de separar-vos dos mais e não vos associar a gente baixa e humilde —, observarem os sete mandamentos, que, segundo vós dizeis, foram observados por Noé e pelos que foram antes de Abraão, basta-lhes isto para se salvarem. Já há, conseguintemente, segundo as vossas próprias ideias, uma religião em que eu posso fundar-me, embora descenda de judeus, pois com súplicas alcançarei de vós o consentirdes que eu me misture com a demais multidão, e se não o alcançar, tomarei a licença por mim próprio. Ah cego fariseu, que, olvidando aquela lei, que é a primitiva, e existiu desde sempre e sempre há-de existir, só fazes menção das outras leis que só posteriormente começaram a existir, e que tu próprio condenas, exceptuando a tua, a respeito da qual, queiras ou não queiras, também os mais julgam conformemente à recta razão, que é a verdadeira norma daquela lei natural, que tu esqueceste e que bem desejas sepultar, para pores sobre o colo dos homens o teu execrando jugo, desalojá-los da sã razão e torná-los parecidos a loucos.
Mas já que viemos a este ponto, apraz-me demorar-me aqui um pouco e não calar de todo os louvores desta lei primitiva. Digo pois, que esta lei é comum a todos os homens e neles inata pelo próprio facto de serem homens. Liga a todos uns aos outros pelos laços de mutuo amor, desconhecendo divisões, que são a origem primordial de todos os ódios e dos maiores males. É a mestra da moral. estabelece a distinção do justo e do injusto, do feio e do belo. Tudo quanto há excelente na lei de Moisés ou em qualquer outra, a lei natural encerra-o em si integralmente na perfeição; e se há algum desvio, por pequeno que seja, desta regra natural, para logo surgem as contendas. para logo há a divisão dos espíritos, e não pode encontrar-se sossego. Se porém o desvio é grande, quem bastará a fazer revista dos males e das horrendas monstruosidades que deste adultério nascem e tomam crescimento? Que preceitos soberanos tem a lei de Moisés, ou qualquer outra, que digam respeito á sociedade humana, para que os homens vivam bem e em concórdia uns com os outros? Sem dúvida o primeiro é honrar os pais; o segundo não violar os bens alheios ou seja a vida ou a honra ou as outras cousas úteis para a vida. Qual destes preceitos, dizei-me, não se contém na lei natural e regra certa que está gravada nos corações? Por impulso natural amamos os filhos, os filhos amam os pais, o irmão ama o irmão, o amigo o seu amigo. Por impulso natural desejamos a conservação intacta do que é nosso e aborrecemos os que nos perturbam a paz, os que por violência ou por fraude nos querem tirar o que é nosso. Deste nosso desejo sai uma conclusão evidente, e é que nós não devemos praticar o que nos outros condenamos. Efectivamente, se condenamos os outros que invadem o que e nosso, desde logo a nós mesmos nos condenamos se invadirmos o alheio. E aqui temos já facilmente tudo que é capital em qualquer lei. O que respeita á alimentação, deixemo-lo aos médicos; eles nos farão saber assaz apropriadamente qual é a comida que faz bem á saúde, qual, pelo contrário, é a que a prejudica. No que toca ás mais cerimónias, ritos, regulamentos, sacrifícios, dízimos (fraude insigne para uma pessoa se gozar do trabalho alheio sem fazer nada), ai, ai!... choramos por serem tantos os labirintos em que nos meteu a malícia dos homens. Reconhecendo este ponto, são muito para louvar os verdadeiros cristãos, que mandaram embora todas as cousas deste género, conservando só o que interessa á moralidade. Não vivemos como é de dever, quando observamos muitas futilidades; vivemos, porém, como é de dever quando vivemos conformemente à razão. Alguém dirá que a lei de Moisés ou a lei do Evangelho contem alguma cousa mais alevantada e perfeita, e vem a ser o amarmos os nossos inimigos, preceito que não se contem na lei natural. Respondo-lhe como acima disse. Se nos apartamos da Natureza e pretendemos descobrir alguma cousa mais levantada, para logo surge a luta, perturba-se o sossego. De que serve ordenarem-se-me impossíveis que eu não tenho forças para cumprir? Nenhum bem daí resultará, senão a tristeza do espírito se assentarmos ser impossível, pela ordem da Natureza, amar o nosso inimigo. Ora se não é de todo impossível, segundo a ordem natural, fazer bem aos inimigos (o que pode fazer-se sem haver amor), por isso que, geralmente falando, somos por natureza propensos á piedade e compaixão, não devemos já negar em absoluto que uma tal perfeição se compreende na lei natural.
Vejamos agora outro ponto, e é, que males brotam quando a gente se aparta muito da lei natural. Dissemos que há um laço natural de amor entre os pais e os filhos, entre os irmãos e entre os amigos. Este laço desata-o e desfá-lo a lei positiva, seja ela a de Moisés ou a de qualquer outro, quando ordena que o pai, o irmão, o cônjuge, o amigo, mate ou traia por amor da religião o filho, o irmão, o cônjuge, o amigo; e uma lei assim quer uma cousa superior ao que pode ser efectuado por criaturas humanas, e que, se se efectuasse, seria o maior atentado contra a Natureza, sendo que a Natureza tem horror a semelhantes actos. Mas para que é lembrar estas cousas, quando os homens levaram a insânia ao ponto de oferecerem os próprios filhos em holocausto aos ídolos a que rendiam vaníssimo culto, apartando-se tanto daquela lei natural e manchando tão feiamente os sentimentos maternos, filhos da Natureza! Quanto mais agradável não fora, se os homens se tivessem conservado dentro das raias marcadas pela Natureza e não houves­sem feito invenções tão hediondas! Que direi dos enormes terrores e ansiedades em que a maldade de uns homens tem lançado os outros homens? E de tais males bem podia estar livre todo o indivíduo; bastaria que escutasse a voz da Natureza, a qual desconhece absolutamente semelhantes cousas. Quantos não são os que desesperam de salvar-se, os que, imbuídos cm varias crenças, padecem martírios, passam espontaneamente uma vida toda de amarguras, mortificando lastimosamente o corpo, buscando solidões e lugares apartados da conversação humana, vexados perpetuamente de tormentos interiores, pois que já pranteiam como actuais os males de que se arreceiam no futuro! Estas e outras calamidades sem conto foi uma falsa religião, maldosamente inventada pelos homens, a que as acarretou à humanidade. Não sou eu próprio um, entre muitos, que fui grandemente enganado por tais impostores e, acreditando neles, me deitei a perder? Falo por experiência. Mas objectam: Se não houver outra lei mais que a natural, se os homens não souberem pela fé que há outra vida, e não temerem as penas eternas, que motivo há para que não se tornem perpetuamente culpados de malfeitorias? Vós, excogitando tais invenções (quiçá por qualquer outro motivo oculto; que é de temer que por interesses vossos quisésseis pôr uma carga sobre os mais), assemelhais-vos aos que, para amedrontarem as crianças, fingem papões ou fantasiam nomes aterradores, até que as pobres crianças, batidas do medo, se submetam á vontade deles, escravizando, enfadadas e tristes, a vontade própria. Mas estes meios são profícuos enquanto a criança é criança: tão depressa como abre os olhos da inteligência, ri-se do engano e já não tem medo do papão. Neste caso estão as vossas invenções ridículas, que só a crianças ou a bolonios podem meter medo; mas as outras pessoas que vos conhecem as manhas, riem-se de vós. Ponho agora de parte o tratar do justificado de semelhante fraude, quando vós mesmos, os autores de tais invenções, tendes uma regra de direito que diz que não se hão-de fazer males para virem bens, a não ser que não ponhais na conta de males o mentir com grave prejuízo dos outros, dando aos fracos ocasião de perderem o juízo. Ora se em vós houvesse uma sombra sequer de religião ou de temor, infalivelmente não deveríeis ter tido pouco medo, quando introduzistes no mundo tantos males, quando levantastes tantas discórdias entre os homens, quando criastes tantas instituições iníquas e ímpias, a ponto de não duvidardes açular impiamente os pais contra os filhos, e os filhos contra os pais.
Uma pergunta desejaria eu fazer-vos, e é, se quando, em razão da malícia dos homens, fazeis essas invenções a fim de conterdes dentro dos termos do dever, com terrores imaginários, os homens, que doutro modo não observariam o bem, vos acode ao pensamento que vós sois semelhantemente pessoas cheias de malícia, que não sois capazes de fazer nada bom; nem pôr em obra senão perpetuamente o mal, prejudicar os mais, não usar de misericórdia para com ninguém. Já vejo que vós vos encolerizais contra mim, que ousei fazer-vos uma pergunta assim, e que cada um de vós batalha denodadamente em defesa da justiça dos seus actos. Nenhum há que não diga que é piedoso, misericordioso, amante da verdade e da justiça. Consequentemente, ou não falais verdade dizendo de vós o que dizeis, ou acusais falsamente a malícia humana, á qual quereis dar remédio com os vossos papões e terrores fantásticos; injuriosos para com Deus, que apresentais aos olhos dos homens como cruelíssimo algoz e horroroso torturador, injuriosos para com os homens, que pretendeis terem nascido para tão deplorável miséria, como se não bastassem os desares que sucedem na vida a cada um de nós. Mas conceda-se que é grande a malícia humana — o que eu próprio confesso, e de que vós mesmos me servis de testemunhas, sendo maliciosos em extremo, aliás não poderíeis idear tais invenções —; procurai então remédios de grande eficácia, que sem maior dano façam desaparecer esta doença de todos os homens em geral, e deixai-vos de papões, que só têm efeito em crianças e tolos. Se, porém, esta enfermidade é incurável no género humano, deixai-vos de mentiras e não prometais, á guisa de médicos charlatães, a saúde que não podeis dar. Contentai-vos com estabelecer entre vós leis justas e racionais, premiar os bons, punir devidamente os maus, livrar de violências os que padecem violências, para que não bradem que neste mundo não se faz justiça e que não há quem salve o fraco das garras do forte. Sem dúvida, se os homens quisessem nortear-se pela recta razão e viver em conformidade com a Natureza, amar-se-iam todos uns aos outros; cada qual, na proporção de suas forças, acudiria á desventura do próximo, ou pelo menos ninguém ofenderia outrem só pelo gosto de ofender. Proceder de modo contrário é proceder contrariamente á natureza humana; e se muitos destes actos se praticam, e porque os homens têm inventado diversas leis opostas á Natureza, e uma pessoa irrita a outra com as suas malfeitorias. Muitos há que andam hipocritamente, fingindo-se por extremo religiosos, e iludem os incautos cobrindo-se com a capa da religião para apanharem os que podem. Semelhante gente pode bem comparar-se ao ratoneiro nocturno, que insidiosamente acomete quem está adormecido e não espera por tal. Andam sempre a dizer: sou judeu, sou cristão; crê em mim, não te enganarei. Ah alimárias ruins! aquele que não diz nada disto e só faz profissão de ser homem, é muito melhor do que vós. Sim! Se não quereis acreditar nele, como homem que é, podeis precatar-vos; de vós, porém, quem se há-de precatar? de vós que, embuçados na capa falsa de falsa santidade, á maneira do ladrão nocturno coando-vos pelas abertas, dais sobre os que mal precatados dormem, e os estrangulais miseravelmente!
Uma cousa entre muitas me maravilha, e é certamente para maravilhar; vem a ser, como é que os fariseus, vivendo no meio de cristãos, podem gozar de tanta liberdade que até julgam em tribunal; e na verdade posso dizer que, se Jesus Nazareno, a quem os cristãos rendem tanto culto, discursasse hoje em Amsterdão, e aos fariseus aprouvesse açoutá-lo novamente por ele impugnar as tradições dos fariseus e lhes lançar em rosto a hipocrisia, poderiam fazê-lo muito á sua vontade. Tal cousa é seguramente uma vergonha que não devia tolerar-se em uma cidade livre, que faz profissão de manter as pessoas em liberdade e paz, e todavia não as defende dos agravos dos fariseus: ora quando um indivíduo não tem quem o defenda ou vingue, não é de estranhar que procure por si mesmo defender-se e vingar os agravos recebidos.
Aqui tendes a história verídica da minha vida; pus-vos diante dos olhos o papel que representei neste vaníssimo teatro do mundo na minha vida tão vã e instável. Agora, filhos dos homens, julgai com justiça e, despidos de todo o afecto, com isenção, proferi a vossa sentença conformemente á verdade, que isto é, sobre tudo, digno de homens que são verdadeiros homens. E se alguma cousa encontrardes que vos force á compaixão, reconhecei e deplorai a desventurada condição humana, de que também vós participais. E para que nem esta circunstância fuja ao vosso conhecimento, ficai sabendo que o nome que eu tinha quando cristão em Portugal, era Gabriel da Costa; entre os judeus para o meio dos quais oxalá eu nunca tivera vindo, fui, com leve alteração, chamado Uriel.

(Tradução de A. Epiphanio da Silva Dias em Uriel da Costa, Espelho da vida humana, Lisboa, Impr. Lucas, 1901, 36 págs. )

domingo, 21 de setembro de 2008

Por que ser médico?

Por que ser médico?



Quando pensamos no profissão de médico, devería nos vir a mente a idéia de alguém que se preocupa com a vida humana, que a coloca acima de tudo, em alguns casos, inclusive, acima da sua própria vida, e que coloca valores materiais em segundo lugar. Mas, pelo que podemos notar, esse não sendo o intuido de muitos dos que seguem, ou pretendem, seguir essa carreira.

Se olharmos mais atentamente para os estudante de ensino médio que escolhem fazer vestibular para medicina, o fazem, insentivados muitas vezes pela família, para que sejam bem sucedidos financeira e, principalmente, para que tenham seus filhos chamados de "doutores". Ou seja, os interesses financeiros e de vaidade são colocados acima do de ser um bom profissional e tenha o fundamental sentimento que deveria ter todo médico: ajudar a todos.

Nas faculdades de medicina, só se vê festas regadas a muita bebida alcoolica e trotes violentos. Quem cursa uma faculdade de medicina, que tem o intuito de cuidar de vidas, tem que ser controlado, equilibrado. Como pessoas que se embebedam podem cuidar dos outros?

A saúde virou um comércio. Os planos de saúde dominam. Estes financiam a candidatura de deputados e senadores que defendam suas causas no parlamento. Os planos privados de saúde fazem lobby junto aos parlamentares para que os favoreçam na elaboração de leis (e sujeitos que aparecem em alguns programas, como no Amaury Jr., que defendem a legalização do lobbysta para causas privadas.) Um parlamentar que recebe apoio de um grupo privado de saúde irá aprovar projetos ou aumentar o orçamento destinado a saúde pública? Acho difícil...

Para entrar numa fila de transplantes tem que ser pagas e ainda, certos tipos de cirurgias são realizadas por médicos e clínicas particulares, que cobram, em alguns casos, R$ 20 mil, R$ 50 mil . Os hospitais públicos não estão equipados adequadamente. A maioria dos médicos particulares cobram consultas caríssimas para a realidade do nosso país, e atendem rápido, já pensando no dinheiro da próxima consulta. Passam remédios sem se preocuparem se estes podem criar efeitos colaterais sérios. E para questionar um erro médico, seja na hora de receitar um medicamento ou num procedimento operatório? Como questioná-los? Como reclamá-los? Primeiramente, o espírito corporativista dos médicos é muito forte. Um médico não fala de um erro de um colega ou de um remédio. Para eles é mais fácil dizer que o paciente não se cuidou ou que as pessoas que o cuidaram não foi de forma adequada. Para se fazer um processo contra um erro médico, é preciso do laudo de um outro médico, e como disse que um não fala mau do outro, ficamos reféns de muitos mercenários que praticam a medicina e a espera da sorte de algum médico sério, realmente preocupado com a vida das pessoas.

Na minha opinião, a profissão de médico é a mais sagrada que existe. A vida é tão rara, tão improvável no Universo, que devemos cuidar dela. E é nas mãos dos médicos que se encontram nossas vidas. Os médicos devem ser valorizados sim. Mas é que nessa profissão não pode haver vaidade nem ganância.

A seguir, está a "Oração dos Médicos" de autoria atribuída a um grande médico e filósofo medieval, Maimonides, a quem admiro por muitas de suas práticas e ensinamentos:

"Ó D’us, Tu formaste o corpo do homem com infinita bondade; Tu reuniste nele inumeráveis forças que trabalham incessantemente como tantos instrumentos, de modo a preservar em sua integridade esta linda casa que contém sua alma imortal, e estas forças agem com toda a ordem, concordância e harmonia imagináveis. Porém se a fraqueza ou paixão violenta perturba esta harmonia, estas forças agem umas contra as outras e o corpo retorna ao pó de onde veio. Tu
enviaste ao homem Teus mensageiros, as doenças que anunciam a aproximação do perigo, e ordenas que ele se prepare para superá-las.

"A Eterna Providência designou-me para cuidar da vida e da saúde de Tuas criaturas. Que o amor à minha arte aja em mim o tempo todo, que nunca a avareza, a mesquinhez, nem a sede pela glória ou por uma grande reputação estejam em minha mente; pois, inimigos da verdade e da filantropia, ele poderiam facilmente enganar-me e fazer-me esquecer meu elevado objetivo de fazer o bem a teus filhos.

"Concede-me força de coração e de mente, para que ambos possam estar prontos a servir os ricos e os pobres, os bons e os perversos, amigos e inimigos, e que eu jamais enxergue num paciente algo além de um irmão que sofre. Se médicos mais instruídos que eu desejarem me aconselhar, inspira-me com confiança e obediência para reconhecê-los, pois notável é o estudo da ciência. A ninguém é dado ver por si mesmo tudo aquilo que os outros vêem.

"Que eu seja moderado em tudo, exceto no conhecimento desta ciência; quanto a isso, que eu seja insaciável; concede-me a força e a oportunidade de sempre corrigir o que já adquiri, sempre para ampliar seu domínio; pois o conhecimento é ilimitado e o espírito do homem também pode se ampliar infinitamente, todos os dias, para enriquecer-se com novas aquisições. Hoje ele pode descobrir seus erros de ontem, e amanhã pode obter nova luz sobre aquilo que pensa hoje sobre si mesmo.

"D’us, Tu me designaste para cuidar da vida e da morte de Tua criatura: aqui estou, pronto para
minha vocação."
(Oração do Médico, Moisés Maimonides)

Visões místicas

Visões místicas



Em todos os lugares e em todas as épocas, aparecem relatos de pessoas sobre visões místicas, ou proféticas, parecendo revelações ou contatos com a divindade. Vou expor alguns casos e fazer algumas observações importantes.



Visões de católicos

No mundo cristão católico, aparecem muitíssimos casos de "aparições" e "revelações" de Jesus, Nossa Senhora e outros santos. Em Portugal, por exemplo, três crianças tiveram a visão de Nossa Senhora, Maria, mãe de Jesus. Nesse encontro, Maria teria revelado às crianças que era preciso orar muito para salvar a humanidade, rezar muitas vezes o terço. E que revelou à Lúcia, que era uma das crianças, alguns eventos futuros do mundo e lhe fez, também, uma descrição do que seria o inferno, onde as almas dos incrédulos e malvados iriam. O inferno, segundo tal revelação, é um lugar quente e de tormento inferno.

Para citar mais um caso, uma freira sonhou com uma irmã dela que já havia falecido e, segundo ela, quando era vivia não frequentava a igreja e era promíscua. No sonho dessa freira, a irmã lhe disse que estava no inferno, que era um tormento imenso, insuportável, e que se arrepende que ao longo da vida não tenha frequentado a igreja.

Existem milhões de relatos como os que eu citei acima: Visões de Nossa Senhora (Lourdes, Fátima, Madjugore, entre outras) e visões do inferno.



Visões em outras religiões

Não só entre os católicos que aparecem tais relatos. No Islã, visões sobre o profeta Maomé aparecem frequentemente. Entre os cabalistas judeus, visões sobre o profeta Elias, o patriarca Abraham e Moisés e, com a Torah. Os budistas têm visões, sonhos com Sidartha Gautama ( o Buda ). Os hindus com suas divindades (Brahma, Shiva, Vishnu).

Ou seja, em todas as culturas aparecem relatos de aparições e revelações místicas.



O que podemos questionar?

É interessante notar que, quando se questiona a pessoa que teve a "visão profética ou mística", se tal é autêntica e genuína em relação a uma verdade revelada pela divindade, elas respondem afirmativamente. E ainda mais: que as visões em seus círculos religiosos (católico, judeu, budista) é verdadeiro e que o relato de visões de outras culturas são alucinações desprovidas de nexo e coerência e não condizem com a realidade. Engraçado que, para os católicos é natural Maria aparecer à três crianças num vilarejo em Portugal e um absurdo Buda aparecer para monges. Ou seja, cada um "puxa a sardinha para o seu lado", validando as que interessam e descartando outras.

Alguns questionamentos pertinentes àqueles que acreditam em tais visões são:

-Podemos reparar que as aparições de Maria são sempre em AMBIENTES CATÓLICOS. Por que ela não aparece num local onde há judeus ou muçulmanos? Já que ela quer enviar uma mensagem de paz ao mundo, acho que ela deveria enviar tal pedido ao mundo inteiro, e não alguns. E ainda mais: seria interessante que ela aparecesse em meios não-católicos para que levasse mais pessoas ao conhecimento da "verdade".

-Por que católicos não tem visões com Buda? E budistas não têm visões com Jesus e Nossa Senhora? E os judeus não têm visões com Maomé?



Algumas respostas

Gershom Scholem, um dos maiores estudiosos das correntes místicas do judaísmo, tem uma explicação para os questionamentos que expus acima. Com muita sensatez, em seu A CABALA E SEU SIMBOLISMO, ele escreve:

"O caráter conservador, tão frequente no misticismo, depende largamente de dois elementos: a própria educação do místico e seu guia espiritual. (...) Quanto à educação do místico, ele quase sempre carrega dentro de si uma herança antiga. Ele cresceu dentro do quadro de uma autoridade religiosa reconhecida e, mesmo quando começa a olhar independentemente para as coisas e procurar seu próprio caminho, todo o seu pensar, e especialmente sua imaginação, continuam permeados de elementos tradicionais. Ele não pode deitar fora facilmente a herança de seus pais, e nem mesmo tenta fazê-lo. Por que é que um místico cristão sempre tem visões cristãs, e não as de um budista? Por que é que um budista sempre vê as figuras do seu próprio panteão e não, por exemplo, Jesus ou Madona? Por que é que um cabalista, em busca da iluminação, se encontra com o profeta Elias e não com a figura de um mundo estranho? A resposta é, evidentemente, que a expressão da experiência de um místico é por ele mesmo transposta para a símbolos do seu próprio mundo; e isto ocorre mesmo que os objetos destas experiências sejam essencialmente iguais e não, como gostam de supor alguns estudiosos do misticismo, sobretudo católicos, fundamentalmente diferentes. Embora reconhecendo diferentes graus e estádios de experiência mística, e um número ainda mais variado de possibilidades de interpretação, um não-católico tende a ser extremamente cético para com as repetidas tentativas feitas por católicos dentro da linha de sua doutrina no sentido de demonstrar que as experiências místicas das várias religiões repousam sobre fundamentalmente inteiramente diversos." (A cabala e seu simbolismo, Gershom Scholem, pag. 24)

" expressão da experiência de um místico é por ele mesmo transposta para a símbolos do seu próprio mundo". Muito correto o afirmado por Scholem. Por isso podemos explicar os casos que citei logo no início do tópico. Três crianças, imersas num ambiente católico, criadas, influenciadas sobre conceitos de Maria, como uma mulher resplendorosa, com aspecto suáve, favoreceu a visão dos jovens. E sobre a freira que recebeu a carta do inferno? Ao longo de toda a sua vida, inculcada sobre a existência e o medo de ir ao "fogo infernal", logicamente iria sonhar com o inferno. E ainda mais para passar a mensagem de que a irmã foi para o inferno pois não frequentava a igreja. No caso, essa freira vive num quadro de uma autoridade religiosa reconhecida, a Igreja Católica, que diz que quem não frequenta a sua Igreja irá para o inferno.